O céu de Zeni
Desde criancinha ouço minha vó bendizer a vida. “Queria estar nascendo agora, gosto muito de viver”. Hoje, ela tornou a falar e ainda disse que já conhece o céu, o próprio sítio onde mora, há cerca 40 anos. Felicidade, para ela, é assim, simples: estar no seu pedacinho de chão em paz, cuidar da terra, do gadinho, da casa, das galinhas… Servir um prato de comida em que quase tudo vem da horta. “Olha, só o arroz não é daqui, o resto, até o feijão, é do sítio”, diz com um sorriso quando me sento à mesa com ela.
O lugar já foi bem movimentado. Eu própria já morei lá em três ocasiões, a primeira vez com menos de 2 anos. Hoje, a vó mora sozinha e cuida de tudo. Tira leite, capina, “passa capim para as vacas”. Mas se você perguntar se ela vive só, a dona Zeni vai afirmar, de uma maneira bem doce, que tem as melhores companhias.
“Moro com meus bichos e Deus”.
Aliás, ela diminuiu o tamanho e a quantidade dos animais para tornar as tarefas mais leves. Essa é uma estratégia da qual dona Zeni se orgulha. E eu, neta coruja, também. Não tem vergonha nenhuma de descansar após o almoço e de contratar ajudantes. Porém, não quer ficar parada e nem com o serviço de casa apenas. Parte da felicidade da minha vó se movimenta, está na lida do campo.
Essa senhora só é resistente com os pedidos de ajuda para a família.
Uma vez, minha tia (filha dela) me ligou pedindo o telefone de um motorista. O motivo me aterrorizou, ela havia acabado de receber alta da UPA. “Mas não se preocupe, Talita, deu só um probleminha no coração, nem eu sabia que ela estava na UPA, disse que foi coisa simples e queria esperar resolver”.
Imediatamente, liguei para a vó, desconfiei do pedido de tranquilidade. Dona Zeni explicou que o remédio estava com dosagem errada e baixou os batimentos cardíacos. Ela não sentiu nada, quem notou foi um médico que visitava a comunidade uma vez por semana. Depois disso, encaminhou-a direto para o proto-atendimento. Lá ficou por uns três dias sem que ninguém da família soubesse.
A médica baixou a quantidade do medicamento e deixou-a mais um tempo para confirmar as suspeitas. Não fosse a necessidade do motorista, era possível que até hoje eu não soubesse desse contratempo.
E sabe por que ela pediu motorista? A vó não queria esperar o horário do próximo ônibus para voltar pro céu dela. O primeiro desejo era retornar para o endereço da felicidade. E só de imaginar que um dia pode ter que sair de lá, ela se apressa em falar:
“Enquanto eu conseguir, é aqui que vou ficar. Tenham certeza de que esse é meu paraíso, não gosto de ir na cidade, só vou quando tenho muita precisão”.
No que depender de mim, dona Zeni vai comemorar muitos aniversários no paraíso particular dela. Ouvi, em uma palestra recente, do Dr Victor Sorrentino, que o ser humano que irá chegar aos 120 anos já nasceu. Ao longo da fala dele, ressaltou que para ser longevo assim dependemos de nossas escolhas, principalmente alimentação e estilo de vida. Constatei que ela se encaixa em tudo. Alimenta-se com comida de verdade, respira o ar do campo, se movimenta, ama o que faz e onde vive. Porém, se ela não soprar 120 velinhas, já ficarei feliz por minha vó ter sido tanto pra mim desde que nasci.
Tenho uma curiosidade grande pela velhice e credito isso às minhas avós. As duas envelheceram bem. Por isso, todos os dias, me pergunto como posso protegê-las. Já era um questionamento que eu fazia antes da pandemia, agora, mais ainda.
Quando escuto que a Covid-19 só mata idosos (o que nem é verdade) penso que as pessoas nunca tiveram uma Zeni ao lado. Ou, simplesmente, não deixaram que a experiência de quem já viveu tanto os ensinasse. Se tivessem se permitido, certamente, estariam como eu, encantadas.