Causo: a receita na porta

Causo: a receita na porta

As distâncias eram maiores naquele tempo. Havia mais estradas de terra. Menos gente tinha carro. Por isso, além de atender no consultório, Dr Érico Ponni tinha como uma das tarefas as consultas em casa nos vilarejos de Martinho Campos. Dessa forma, o povo de Ibitira, Capão do Zezinho, Sacramento, Albert Isaacson e todos os outros lugares eram atendidos.

Em uma dessas visitas, no Logradouro, algo muito peculiar aconteceu. Ponni chegou na casa do humilde Joaquim. O senhorzinho ficou agradecido quando avistou o médico. Há dias uma tosse persistente incomodava a esposa, Mariinha. Não teve chá que desse jeito. A “ruindade” que sentia no corpo até afastou-a da lida por uns dias, coisa difícil de acontecer.

“Oh, doutô Pone, que beleza ver o senhor. Tem dias que a Mariinha ruim”.

“Nós vamos dar um jeito nisso”, disse o médico.

Depois de muitas perguntas, de ouvir o coração e pulmões da mulher, o diagnóstico estava pronto. Nada preocupante, apenas uma gripe mais chata, dessas que custam a ir embora e que precisam de um remédio mais forte para passarem. Seu Joaquim ficou feliz demais de saber que rapidinho a esposa estaria 100%.

“Meu receituário acabou. Tem algum papel e caneta aí? São remédios que você compra até sem prescrição, mas têm nomes complicados e você pode esquecer”.

“Iiii, doutô, o mais parecido que tenho com caneta aqui é carvão no borraio”.

“E papel?”

“Também não tem. Mas escreve na porta que eu guardo na cabeça daqui até a Badia, na farmácia, aí não há de ter muito problema”, sugeriu Joaquim escondendo que não sabia ler.

Assim o médico fez. Escreveu, pela primeira vez na vida, os nomes dos remédios na porta, com carvão. Foi embora depois de tomar um cafezinho e de desejar melhoras para Mariinha. Já era tarde, o sol se punha. Tratou de se apressar para não ter que dirigir no escuro.

No dia seguinte, Joaquim fez o de costume quando precisava ler algo. Foi à casa de Raimundinho, quem realizava a leitura as cartas para ele. Só que estava tudo fechado e  caladinho. O companheiro letrado não estava. Voltou pensativo pro sítio. Lembrou-se que Ponni havia dito para ele não demorar a comprar os remédios, para ir no dia seguinte à farmácia.

Joaquim olhou pra porta, a porta olhou pra ele e a solução apareceu. O jeito era arrancá-la para levar a receita até a Badia, a cerca de 30 quilômetros dali. Colocou a receita nas costas e foi. Parou algumas vezes no caminho. Ele era forte, a distância cansou-o.

Quando chegou na farmácia, parou em frente ao balcão com a porta que escancarava a solução para a gripe valente.

Dilson Arruda, o farmacêutico, assustado, falou:

“Uai, receita na porta?”.

“Foi o jeito. O doutô tava sem papel, o Raimundinho não estava em casa pra ler pra mim, tive que arrancar e trazer”.

Dilson providenciou tudo. Olhou para o rosto de Joaquim e viu o suor, vermelhidão por ter andado no sol e o cansaço por ter caminhado tanto. Fechou a farmácia e levou o senhor de volta pra casa. Um detalhe: a porta foi junto, pois precisava voltar para o lugar de origem.

Chegando lá, Joaquim agradeceu com verduras da horta e o desejo de que Deus desse tudo em dobro pro farmacêutico e para o Dr Ponni. Deu logo a primeira dose do remédio. Na manhã seguinte, Mariinha já havia recuperado parte do vigor perdido com a gripe, já não tossia tanto. Os remédios deram força suficiente para ela cuidar das plantas, fazer comida e cuidar da sede da rocinha.

Deixou a receita escrita com carvão como estava. Toda vez que olhava, eles agradeciam a bondade do Dr. Ponni e do seu Dilson Arruda.

Observações:

Quem conta um conto aumenta um ponto. Eu ouvi essa história algumas vezes e quem me ajudou mais a escrevê-la foi o Ferreira, que ama um causo. Mas ele ficou na dúvida se o nome do senhor era Orestes ou João. Perguntei ao meu pai e entramos em contato com o Rômulo Arruda, filho do Dilson. O farmacêutico esclareceu que era Joaquim e a pessoa que estava doente era a esposa dele. Não soube detalhar o que ela tinha.

Outro ponto: uns dizem que a receita teria sido aviada em uma janela, mas porta dava mais dramaticidade e o Dilson confirmou que era porta mesmo. No final, o mais importante é terminar a leitura rindo bastante. Eu ri todas as vezes que ouvi essa história e espero que você também tenha terminado a leitura mais alegre.

Escritor por Talita Camargos Veja todos os textos deste autor →

Talita Camargos é jornalista e flerta com a literatura, procura inspiração em conversas de ônibus, flores, familiares e amigos. Idealizou o Texto do Dia e publicou nos 365 dias de 2015 neste blog como desafio pessoal.

Oi, o que achou do texto de hoje?

Você tem 3 comentários
  1. Aloysio Borges at 14:03

    Maravilha de conto!
    É o queais tem ai por estas bandas.
    Mimha mãe de criação e ex professora dona Letícia que ainda é viva e lúcida com seus 90 anos. Tem muitos causos como este.
    Alguns contados várias vezes,mas, nwm por isso a gente perde o interesse em ouvir novamente.
    Parabéns pelo conto. Talita. Um abraço!

  2. Izabel Cristina at 2:28

    Parabéns ! gostei muito do seu causo.Me fez voltar ao tempo .Quantos causos ,escutei, quantos causos eu contei . Lembranças. ..

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