Cor de sangue
Doeu, sabe? Eu não sei se você viu, porém quando eu vi o coração apertou, a cabeça deu um nó – a garganta também. Um brutamontes, cara, enorme. E era só um garoto! Se tivesse mais de 1,60m era muito.
Ele gritou? Gritou! Mas não estavam todos gritando? Acontece que ele gritou diferente e, ali no meio, parece que não podia. Não sei onde tava escrito, mas não podia.
Apontaram-lhe o dedo pra cara só que ele não se intimidou. Achei até que cresceu uns centímetros, mas foi pouco. Tinha um guarda ali na frente, mas o brutamonte avançou.
Muitos avançaram, é verdade, entretanto um acertou. Com força, com brutalidade, com violência. Ele se esquivou, mas não deu. Ele recuou, mas não deu!
Como eu vi? Tinha gente com câmera lá. Capaz que eu vi do mesmo jeito que o cara da câmera viu: por uma tela. Mas eu quase não acreditei. Não sei se era o pior, mas tava por vir.
Finalmente um policial tacou spray de pimenta no brutamontes, mas demorou pra afastá-lo do garoto. Atordoado com a agressão, ele olhava pro lado quase sem entender o que tinha acontecido.
O cara da câmera perguntou “Qual é o seu nome completo e a sua idade?”, ao que ele respondeu “Vitor Basílio Pereira, eu tenho 17 anos”. Tá ecoando aqui até agora. “Dezessete anos, 17 anos, 17 anos….”
Esmurraram um garoto de 17 anos porque ele tava de camisa branca, mochila cor de sangue e gritou “não vai ter golpe” no meio de um monte de outros gritos. E ele reclamava disso.
Eu também reclamo. Reclamo porque Vitor disse que estava em seu direito, e estava. Reclamo porque o brutamontes, muitos deles, também disseram que estavam em seu direito. E talvez estivessem.
Mas eu reclamo porque Vitor gritava de indignação, e o que recebeu foi ódio puro. E a indignação cresceu naquele corpo de 1,60m, até a câmera captou. Mas o que inflamou nos brutamontes foi mais ódio.
E eles não pararam! O cara da câmera, e outros caras com câmeras, cercavam Vitor – assim como a polícia e mais guardas. Mesmo assim a horda avançava.
Como ursos famintos, investiam contra uma presa do lado de fora, loucos para alcançar a caça. E gritavam. Acusavam o menino de falta de graça. Insultavam a hipotética profissão da mãe dele.
Pra fechar, enquanto mandavam-no procurar a suposta genitora e chamavam-no de excremento, supunham aos gritos quem ele amava. Demonstravam aquilo que preocupa: o exercício da raiva, da perseguição.
É esse o medo que me toma. Da multiplicação de um estado de exceção. De que a regra seja o silenciamento do diferente. De que o ultraje ao fundamental se reproduza.
Não se trata de um receio vazio. Vitor não foi o único, foi mais um. E é exatamente isto que incomoda. Quando quem sofre são aqueles de sangue vermelho correndo nas veias, parecem serem só mais um.