Obsessão: do auto-falante a tirinha do Snoopy

Obsessão: do auto-falante a tirinha do Snoopy

Por quase 20 anos, eu só pensava na morte quando no auto-falante da igreja de Ibitira uma nota de falecimento era anunciada. A música fúnebre era um alarme igual a despertador – eu parava o que estava fazendo, esperava o nome, local do velório e horário de sepultamento. Comentava algo sobre a pessoa ou perguntava se meus pais conheciam – não passava disso, eu e a morte tínhamos uma relação fria e distante.

Depois que me mudei, o alarme passou a ser a própria notícia da morte dos que eu conhecia, próximos ou nem tanto, além do auto-falante da igreja quando eu estava em Ibitira. Era só um desses alarmes soarem para eu fazer uma breve reflexão sobre a morte, ainda fria.

Só mudei um pouco quando a nota de falecimento anunciada foi do meu avô. O som soou tão agudo que feria meus ouvidos. Eu não precisava parar para saber o que havia acontecido – já sabia tudo quando a moça disse “Nota de falecimento…” Chorei, havia visto-o no dia anterior, data do aniversário – algumas mortes têm desses caprichos que as tornam particularmente intrigantes e difíceis de digerir.

Voltei a sentir com mais força quando soube que minha vó Maria, uma senhorinha que adotei, morreu. Minha mãe impediu que me contassem e não consegui me despedir dela, o mesmo aconteceu com meu vô Toninho.

Obsessão: o início

Sinto a falta de todos até hoje, entretanto foi a morte da minha mãe que desencadeou a obsessão. Minha cabeça nunca mais foi a mesma. A morte que era tão distante, passou a ser muito presente, em vez de eu tratá-la friamente foi ela que me jogou um balde de gelo. Parece que ao longo do tempo ela se aproximou de mim – primeiro em um som para toda cidade, depois por notícias e de uns anos para cá na pele.

A morte da minha mãe foi uma dessas cheia de “caprichos”, com detalhes que levam o pensamento para ainda mais longe – com direito a carta de despedida, data de casamento adiada, partida prematura por causa de um tumor raríssimo.

E eu eu que precisava de um alarme para pensar na morte, comecei a viver como se o tempo todo, do auto-falante de Ibitira, uma nota de falecimento de alguém muito próximo fosse anunciada. No ano seguinte a morte da minha mãe, perdi um primo, em uma situação cheia de pontos que detêm o pensamento também. Minha obsessão piorou.

Tenho medo de os mais próximos de mim partirem do nada. Lembro dos que se foram toda hora. Procuro justificativas para tudo – a forma que foi, como a pessoa deve estar do outro lado. Muitas vezes acredito neste outro lado, porém me pego em dúvida do que vem depois em certos momentos. Escolho maneiras de morrer, um absurdo, eu sei. Falo com Deus o que descarto – as mortes violentas estão no topo. Já pedi para que eu seja levada como um passarinho, durante o sono.

Entretanto, já me convenci de que em acidentes, por exemplo, o topor tira toda consciência de tudo, sente-se dor “sem sentir”. Conclusão tirada depois de estar em um capotamento em que todos os envolvimentos não se lembram de quase nada, só foram sentir dores de verdade depois.

Minha mente se tornou uma confusão, mórbida e obsessiva, a ponto de eu implorar para os pensamentos de luto irem embora.

Melhoria

Senti que melhorei de uns tempos pra cá. Quando eu comecei a escolher formas de morrer vi que estava indo longe demais. Que poder era este que eu achava ter? E uma simples, ou nem tanto, tirinha do Snoopy (abaixo) me fez pensar em algo – que devo me preocupar é em escolher a forma de viver. Há muitos acasos, coisas entre o céu e a Terra que determinam meu viver, porém é da vida que tenho mais controle.

tirinha do snoopy sobre morte e vida

Ainda sou muito obsessiva e tenho procurado me livrar dessa obsessão. Fico incomodada do quanto penso na morte, muito mesmo, queria pensar bem mais na vida. O que devia ser natural, porém tornou-se um exercício, quase que algo obrigatório. Em alguns momentos, tenho que fazer meu pensamento mudar, a força. O esforço é tanto que desconfio que não vou naturalizar os bons pensamentos, mas ter outra obsessão, dessa vez pela vida.

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Talita Camargos é jornalista e flerta com a literatura, procura inspiração em conversas de ônibus, flores, familiares e amigos. Idealizou o Texto do Dia e publicou nos 365 dias de 2015 neste blog como desafio pessoal.

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