Nota mental
Por Simião Castro
Ele atendeu o telefone, mas continuou seguindo em frente na calçada. O vento trazia pros meus ouvidos parte do diálogo, embora eu só escutasse o que ele dizia. A passagem de ônibus tinha subido – absurdamente, pra variar – e eu não tava com saco pra esperar no ponto aquele dia, daí resolvi ir embora à pé. Ele ia à minha frente já a alguns quarteirões, porém só dei pela sua presença quando escutei o “oi” ao celular.
Não fiz força pra ouvir, embora admita que também não tenha feito força pra não ouvir. Ele parecia tranquilo a princípio, mas claramente não alegre.
— Você não quer deixar pra outro dia? Se é pra correr tanto, eu prefiro não te atrapalhar — foi a primeira frase inteira que me ganhou os ouvidos.
Notei que ele deu uma reduzinha no passo durante a resposta que ouvia. Eu não tinha ideia do que isso significava. O que se seguiu foi uma pequena sucessão de “nãos” e “sims” meio hesitantes e levemente culpados. Eu costumava virar na próxima esquina, entretanto poderia atrasar conversão por mais uns dois quarteirões. Fiquei por decidir se deveria continuar entreouvindo o assunto ou voltar à dignidade de não me meter na vida dos outros até que a rua chegasse.
Não virei.
— Você tem que pensar se me ver é uma prioridade… — ele começou a falar e até afastou o fone do ouvido quando foi obviamente interrompido — Não, você não entendeu. Eu só quis dizer que perder um encontro não é lá grandes coisas.
Dessa vez ele estacou! E eu quase tropecei pra fingir que não tava parando por causa dele. Me abaixei, fazendo de conta que tava amarrando o tênis.
Esperei ele distanciar um pouquinho pra voltar a caminhar, e já pensava que voltaria pro meu próprio mundinho quando ele virou a esquina exatamente na rua que era meu limite – e pro mesmo lado que o meu.
Talvez eu pudesse atravessar a rua, mas esse é um país livre, não é?
De todo modo, mesmo que eu tivesse feito isso não teria adiantado. O que escutei em seguida foi quase como uma explosão.
— EU SOU RESPONSÁVEL PELO QUE EU FALO E NÃO PELO QUE VOCÊ ENTENDE!
“Mentira”, pensei eu. Afinal, a maneira como a gente fala é tão importante quanto o quê a gente fala! Ele tava só querendo fugir da responsabilidade, se você me permite opinar.
Com um último berro – “VAI PRA P*** QUE TE PA***, ENTÃO!” – ele entrou na portaria de um prédio e eu segui em frente como se nada tivesse acontecido. Notei que ele desligou o celular e enfiou o aparelho com raiva no bolso.
Eu saquei o meu, abri meu bloco de anotações virtuais e escrevi apenas:
Nota mental: sempre escolher as palavras com o carinho com que eu gostaria que escolhessem pra mim.
Observação:
Este texto é um conto fictício, mas bem que podia ser verdadeiro, né?