Dia de que mesmo?
Era sábado, José e Raul falavam sobre o avançar da idade, dos filhos criados, netos, trabalho… José havia acabado de completar exatos 60 anos, Raul iria fazer 51, no dia da bandeira. As conclusões dos dois sobre a vida eram parecidas. Já tinham feito quase tudo do ponto de vista material.
Raul ainda tinha um sonho: viajar para os Estados Unidos, só não o realizava por medo de avião. José, que sempre viajava para lá, propôs algo que podia dar coragem ao amigo: “Nada, viaja comigo, os aviões nunca caíram comigo dentro”. E por mais longe que voassem, em pensamento ou não, concordavam que Ibitira era o melhor lugar pra se viver, até que podia não ser, mas de lá não queriam sair. Não para sempre!
José era jardineiro, Raul fazendeiro, ambos farristas, apreciadores de uma boa pinguinha, galinha caipira no fogão a lenha. Foi só falar do gosto pela comida que José se ofereceu: “Fogão a lenha eu não tenho, mas posso levar a pinga pra sua roça, pode até escolher – Farrista, Ligurita ou Cristalina – no dia do seu aniversário, que dia é mesmo?”, afirmou e perguntou depois que o assunto já tinha dado voltas demais. “Dia da bandeira, 19 de novembro, fácil de guardar. Tá combinado, já vou escolher a galinha mais gorda e a pinga pode levar uma de cada, se sobrar a gente marca de beber depois”, gostou do autoconvite do amigo. “Mas você tá falando sério, né?”, perguntou. “Tô, uai, nem vou marcar serviço nenhum na sexta”, deu certeza.
Pronto, chegou em casa e José já tinha esquecido. Ele esquecia tanto das coisas que teve uma época que os filhos até o levaram ao médico, tudo normal, o esquecimento não significava nenhum comprometimento cognitivo do jovem senhor, só falta de atenção mesmo.
Porém, o fato é que o dia 19 chegou e nada dele lembrar. A recordação do dia da bandeira quando estava na quarta série veio à mente, mas não trouxe nada associado. Raul se lembrou que o amigo ia. Foi pra roça cedo, matou a galinha mais gorda, colocou o lenha pra queimar no fogão e esperou. Sentado, em pé, de todo jeito. Só sentado não cansava, porém o entediava. O pior de tudo: sinal de celular nunca chegou à fazenda. Se o amigo tivesse algum problema seria impossível de saber.
Comeram a galinha e guardaram as sobras, sem pinga, sem piadas do José e farra noite adentro. Raul ficou triste, mas pensava que podia ser algum imprevisto.
No dia seguinte, os amigos se encontraram por acaso. Raul brincou: “E o dia da bandeira, hein?” “Ow, você acredita que ontem eu lembrei de como era, hoje ninguém comemora a data mais, né?”. Raul respondeu com um riso sem graça, logo percebeu que José não havia se lembrado do aniversário ou estava brincando o tempo todo com o autoconvite. Ficou triste e ao mesmo tempo preocupado. E se o Zé tivesse com algum problema?
Só entendeu a real razão do esquecimento quando encontrou com um dos filhos dele. Nunca ficou tão feliz em saber porque o amigo havia esquecido de tudo. Tanto que logo pegou a caminhonete, tocou na casa do companheiro e falou: “Ow, tem o resto duma galinha gorda lá na roça pra gente comer com pinga, bora?” . E lá foram eles, Raul deu indiretas sobre o aniversário a noite inteira e comprovou: o cara gostava mesmo dele, só não lembrava, de verdade. Deu importância não, e pensou que era melhor ter motivo pra comemorar a vida nos 365 dias do ano do que só no aniversário, ainda mais com um amigo feito o José.