Crônica hipocondríaca

Crônica hipocondríaca

É normal ter que andar com uma sacolinha de remédios por causa do avançar da idade. Mas para a senhorinha desta história, os comprimidos eram companheiros desde a juventude. Mariazinha sempre pensava sofrer de vários males, mas o problema era um só: hipocondria, aquela mania de remédios.

Assim, mais do que batons, uns trocados e documentos, o que nunca faltava na bolsa de Maria era medicamento, para curar uma simples dor de cabeça, tosse ou alergia até  . Ela fazia questão de conferir a farmacinha portátil. Porém, uma vezinha só deixou os preparativos das malas para a filha por estar meio tonta às vésperas de uma viagem para os Estados Unidos. Quanta irresponsabilidade, a menina esqueceu de colocar meia de dúzia de medicamentos na bolsa nova. Só quando elas já cruzavam o oceano é que foi perceber.

— Luzia, cadê o comprimido para dor de cabeça, tonteira, insônia e tremedeira?

— Uai, mãe, não está aí junto com os outros não?

— Tá não, e pelo visto faltou um monte, chegar lá a primeira parada vai ser a farmácia para completar, vai que passo mal longe…

E assim foi, nem os altos preços dos remédios no aeroporto convenceram Mariazinha de ficar sem eles até chegar na casa dos filhos que moravam na terra do tio Sam. Ela teve que ouvir Luzia falar bastante no caminho sobre o valor que ficou a compra.

— A senhora tem noção de que poderia comprar roupas ou fazer um passeio em vez de comprar remédio com os dólares que gastou? Você não tem nada, o único problema é a mania de doença e remédio.

— Você não entende, eu pareço não ter nada, é porque me cuido e antes que piore já solucionei o problema – sentenciou.

Quando finalmente chegaram à casa dos filhos Arnaldo e César, ela ainda cismou com outra mania, a de manter as roupas sempre limpinhas. Tratou de deixar o vestido que havia usado no voo cheiroso, devidamente lavado. Só depois é que puderam começar a passear.

E num desses passeios, Mariazinha começou a sentir tonteira e dor de cabeça. Ela repetia a todo momento que ainda bem que a primeira parada havia sido a farmácia, mesmo com os remédios terem sido pagos em dólar. Falou tanto que quase esqueceu de tomá-los.

— Ai mãe, então tome os comprimidos, antes que eu também fique com dor de cabeça. Tá no bolso o de tonteira, vi a senhora colocar para ficar mais fácil, já que a labirintite anda atacada.

Assim Maria pôs fim ao sofrimento. Engoliu o comprimido e passeou satisfeita. Ainda comentou que o remédio americano era tiro e queda, levaria um pequeno estoque para o Brasil.

Só que ao voltar para casa, Luzia foi colocar a bolsa da mãe em ordem e viu que a cartela estava intacta, nenhum comprimido havia sido tirado. Foi quando a mãe chegou e disse:

— Engraçado, um botão do meu vestido soltou na hora de lavar, como era do punho, guardei no bolso e parece ter sumido.

Daí que Luzia solucionou o mistério:

— Mãe, a cartela do remédio de labirintite também tá completa. Lembra que passou mal na rua? Então, disse que tomaria o comprimido do bolso, mas era o botão. Viu? Não falei? A senhora é boa feito um coco, só é hipocondríaca.

Sem graça, a velhinha respondeu:

— Não, minha filha, tem outro problema: minha cabeça tá ruim também, é a memória. Agora vou ter que acrescentar uns comprimidinhos para a cabeça.

E assim Luzia aprendeu um truque, sempre que faltava algum remédio e a mãe reclamava dava botões pardos em vez de comprimidos. Sempre funcionou e as duas passaram a brigar menos.

 

 

 

 

 

Escritor por Talita Camargos Veja todos os textos deste autor →

Talita Camargos é jornalista e flerta com a literatura, procura inspiração em conversas de ônibus, flores, familiares e amigos. Idealizou o Texto do Dia e publicou nos 365 dias de 2015 neste blog como desafio pessoal.

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Você tem 11 comentários
  1. Ema at 21:27

    Hahaha Adorei. Na realidade é bem assim, depois que um hábito/mania é criado, é muito difícil de perder.
    Eu tenho essa mania mas com as mãos. Eu sempre estou mexendo ou segurando algo…
    E você? tem alguma mania?
    beijos

  2. Viviane Santos at 2:00

    Muito bacana o texto, adorei. E é tão mais comum do que se pensa esse problema. Minha sogra é um exemplo, não hoje em dia, que é mau idosa com alguns problemas de verdade, mas quando me casei, só por “gesus”…rs A bolsa dela pesava ao equivalente a seu peso, só de remédios…rsrsrsrs
    No entanto acho que essas pessoas são mais carentes do que tudo, precisam de apoio emocional, não de críticas, como muitas vezes fazemos, por falta de paciência. Concorda?
    Beijos
    Viviane
    Razão e Resenhas

  3. Ana Carolina Lopes at 11:36

    Oi Talita! Eu tenho cunhadas que são assim, maníacas por remédio. Sabe daquele tipo que passa o dia com o medidor de pressão e diabetes na mão? Pois então. Bem que podia haver um método para enganar elas também, nem que fosse por um dia, pra perceberem o quão desnecessária é essa atitude 🙂
    Adorei o texto abraços…

  4. Carolina Mello at 16:34

    kkkk botão como placebo foi ótimo, e o engraçado que foi ela mesma que se enganou e nem percebeu, e ainda achou que ele foi melhor que os proprios remedios rs, mais engraçado foi a filha que trocou a farmacia por uma loja tipo armarinho que vende botões rsrs muito engrado, bjos <3

  5. Alessandra Ramos at 22:42

    Nossa, vi minha tia retratada nesta crônica! Ela já chegou na minha casa passando muito mal, o drama foi tando que ficamos assustadas, eu e minha mãe na época…minha outra tia chegou, primas, minha avó…passamos a tarde rindo, pergunta se ela lembrou como estava quando chegou?! Acho que a carencia afetiva, a solidão, faz isto. Ela estava numa fase ruim do casamento, as coisas melhoraram, mas ela continua com mania de falar só em doença, ler a bula para ver os efeitos colaterais e sentir os mesmos em seguida… Adorei sua crônica,
    Beijos
    Alessandra | http://www.ale-dreams.net

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