Cobrador

Cobrador

 

Ela já tinha subido no ônibus quando eu dei sinal pra parar. Tinha uma fila de gente pra passar na catraca, mas ela tava esperando, meio que ao lado do cobrador, porém sem sentar.

Eu já tinha tirado meu cartão para passar quando aconteceu. Algumas pessoas já tinham pagado a passagem e ela falou com o cobrador – ou começou a falar:

— O senhor já tem troco pra cinquenta? Eu tentei trocar antes de sub… — foi interrompida.

— Eu não tenho troco não acabei de entrar no serviço tô abrindo a catraca agora, não tem nada aqui não — praticamente berrou o cobrador, desse jeitinho mesmo, sem nem tomar fôlego pra separar uma palavra da outra.

Ela ainda tentou explicar de novo, só que o peso do desaforo obviamente já começava a forçar a voz pra dentro, que foi se abaixando até quase não se ouvir. Não aguentei. Enquanto passava na roleta, falei alto pro cobrador:

— Acontece que o senhor tem que ter troco, não interessa o valor!

Por uma fração de segundo ele se surpreendeu com o atrevimento, mas firmei o semblante.

— Não é bem assim. Eu acabei de começar o dia… — ele começou, porém, dessa vez quem interrompeu fui eu.

— É bem assim, sim! Não importa o valor, a empresa tem que ter o troco — e não parei, impedindo mais gente de passar, fui andando para aonde ia me sentar.

Desaforo

Ele tentou argumentar mais uma vez, entretanto estava errado. Eu não ia deixá-lo achar que estava certo. Especialmente porque não se trata ninguém com aquela grosseria, com aquele descaso.

Ele é um prestador de serviço. Aquela senhora é a usuária de um serviço caro e pago! O que ele fez, nessas circunstâncias, é imperdoável. O pior é que eu já esperava pelo que viria e estava preparado pra isso.

— O máximo é R$ 20 — ele disse começando a apontar pra plaquinha de “evite notas superiores a R$ 20”.

— Não senhor! — retruquei — isso aí é uma sugestão. É preferencial que as pessoas deem notas menores que R$ 20, isso não é regra! — e me sentei.

Ele continuou resmungando. Tem cidades que realmente definem que o troco máximo é vinte vezes o valor da passagem. Não tem lei para isso aqui, mas, tivesse, significaria R$ 69 reais de teto.

Lógica

Quando você vai a uma loja tenta fazer um pagamento e o vendedor não tem troco o que acontece? Ele se vira! Vai à porta vizinha trocar o dinheiro, pede a outro cliente pra trocar. Não interessa: ele se vira!

“Ah, mas o cobrador poderia ter pedido para outros usuários trocarem”. Poderia, mas não fez. Foi primeiro ser grosso com a senhorinha, que depois descobri já ter 63 anos. Pensa! Ter 63 e precisar ser humilhada por causa de R$ 3,45!

Calhou que, olha só, quem tinha R$ 50 em notas pequenas na carteira pra trocar o dinheiro dela? Pois é, eu! E quando fui mostrar pro cobrador que ia trocar ele quis discutir de novo!

Ofereci a ela – que continuava de pé! – o dinheiro e perguntei se ela queria trocar comigo. Como quem pede desculpas, murmurou que poderia esperar mais gente entrar e fazer mais caixa. Insisti mais uma vez e ela aceitou.

Empatia

Depois que atravessou a catraca, veio se sentar ao meu lado. Me contou a idade e reclamou que não era a primeira vez que se sentia humilhada. Contou também que correra antes de pegar o ônibus, pra tentar trocar o dinheiro num boteco: não deu tempo. O coletivo veio antes.

E aí me contou o pior! Estava recém-operada do coração. Não poderia correr de jeito nenhum, por risco de complicações. Estava indo ao Centro refazer umas cópias de documentos para um exame do coração que faria.

Depois que ela desceu, me abençoando até a terceira geração – pelo que aliás sou muito grato – fiquei pensando. A gente nunca imagina pelo que as pessoas passaram.

E se a carga dos anos, dos acasos, dos descasos já fosse tão grande naquela mulher que mais aquele desaforo, aquela palavra grosseira, fosse justamente a gota d’água que aquele coração fragilizado não aguentasse? Se aquela mulher tivesse um treco na frente do cobrador, o que aconteceria?

Escritor por Simião Castro Veja todos os textos deste autor →

Simião é jornalista, repórter de política, escreve contos e crônicas. Também conta histórias em áudio, vídeo, o que você pedir, é produtor multimídia, saca um pouco de tudo. “Eu tento ser um jardineiro das palavras, um aventureiro das sílabas. Duvido de tudo e prefiro assim! As certezas me assustam. Quem tem certezas demais também”.

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