Alvorada da mulher de verdade
Amélia nada se parecia com a Amélia do samba. Amélia trabalhava de segunda a segunda, tinha uma loja, três filhos e um marido. Amélia tinha tempo para tudo, menos tempo (e dinheiro) para se divertir. Amélia não ia a festas, até que um dia Maria chamou-a para ajudar no caixa da festa do padroeiro. Amélia era viciada em trabalho e achava que quem estava nesse mundo tinha que ajudar o próximo.
Amélia mandou os dois filhos menores para a casa da mãe, o marido ajudou em parte da festa e levou a menina mais velha para dormir, ficou lá. Amélia ficou na festa até o dia amanhecer. Coitada da Amélia, né? Quando ia a uma festa era para trabalhar. Mas naquele dia ela se divertiu. Marília chegou no caixa quando Amélia já conferia o dinheiro para ir embora e fez um convite:
— Amélia, vamos acompanhar a banda pelas ruas da cidade na alvorada?
— Preciso ir para casa, Marília. Antônio e Jéssica já devem estar quase acordando e eu nem dormi.
— Ah, Amélia, se dê um tempo, se dê o direito.
— Não posso mesmo, e estou esgotada.
— Então ao menos tome esta dose de pinga comigo.
Amélia virou o copo de aguardente como quem bebia água. Naquela cidade era normal e até parte da cultura beber pinga, na juventude Amélia tinha participado de muitas rodadas de vira-vira com os amigos e aquela pequena dose não ia lhe fazer mal, até ajudaria a dormir, pensou.
O pior, ou melhor, é que ajudou mesmo. Ajudou que Amélia se levantasse e acompanhasse a banda de música pela cidade. Tocavam Maria Bonita, Baile na Roça e ela dançava como quem tivesse voltado no tempo. Marília se preocupou, ficou até sóbria, Amélia levantou da cadeira transformada – efeito da cachaça, estômago vazio, cansaço e muitos anos sem aproveitar a noite – mas depois se juntou a ela. A amiga merecia estar ali, daquela forma, sem preocupações. Quem abria a janela se espantava de ver aquela mulher tão séria ali, aproveitando a alvorada, tradição das festas do lugarejo, no qual a banda saía pela cidade com o dia prestes a amanhecer.
Tudo corria bem até que Amélia cismou de entrar na casa em que a loja dela funcionava. Sem chave, ela falou para Marília:
— Vou fazer que nem os ladrões, tirar as telhas e pular lá dentro, cansei de acompanhar a banda.
E foi neste momento que Amélia voltava a ser quem era antes da cachaça – uma mulher obstinada, que enquanto não conseguisse o seu objetivo iria parar. E de telha em telha ela entrou na casa, por incrível que pareça conseguiu a façanha sem ganhar nenhum aranhão. Difícil foi tirar Amélia lá de dentro, Marília precisou chamar o irmão, o marido da amiga ela não podia, ficou com medo de colocar em risco o casamento.
Levaram Amélia para a casa da família de Marília. O marido e a filha mais velha chegaram lá por volta de meio-dia e logo souberam de tudo. Antônio sabia que tinha uma mulher confiável, lutadora e sobretudo humana, nem ficou bravo. Quando o irmão de Marília o perguntou o que ele iria fazer, logo disse:
Preparar uma canja de galinha e um chá de boldo. Amélia é mulher de verdade e não há mulher de verdade que aguente o tranco sem se divertir, esquecer de tudo e até perder o eixo de vez em quando.
Amélia acordou com dor de cabeça e com um chá de boldo a frente. Tomou, tentou se lembrar do que havia acontecido e quando vieram as lembranças meio embaralhadas ela não acreditava, mas ao mesmo tempo queria mais alvoradas como aquela.