Estou nua
A nudez é incômoda. Mas escrever é isso – tirar o que visto, o que protege (ou esconde) o que tenho de mais íntimo. Eu fico nua desde que aprendi a escrever. Aos 7 tinha um caderno rosa com estrelas brancas que guardavam minhas histórias, todas inventadas diante da minha vida. Os meninos bonitos da escola, o bullying que na época tinha o nome de zoação e por isso mesmo parecia ser menos problemático apareciam no meu primeiro caderno de histórias. A única leitora na época era minha mãe e uma coordenadora da escola. Um dia, em um consultório de uma dentista especializada em crianças, li uma história infanto-juvenil e depois passei para minha mãe. Eu havia gostado, ela disse que preferia o que eu escrevia.
Nunca vou saber se o elogio foi sincero ou uma forma de me incentivar. Tenho alguns motivos para crer que ela realmente gostava das minhas historinhas, embora eu duvide que aos 7 eu tenha escrito algo melhor do que um autor que publicou um livro. Ela dizia que eu era desengonçada para dançar, cantava mal e não levava jeito com os afazeres do lar. Na loja, onde eu a ajudava, também vivia me xingando, porém, quando me lia rasgava elogios. Até meus diários ela lia e sem querer comentava depois. Eu deixava, pois a escrita era uma das poucas coisas que ela achava que eu fazia direito. Só que nunca vou saber se o que redigi aos 8 anos realmente era bom. O caderno com estrelinhas sumiu e ela se foi. De toda forma, foi um incentivo e tanto para eu continuar a escrever.
Só que a vida tornou-se cada vez mais complexa e eu comecei a me sentir nua. Tudo que estava dentro de mim passou a ir para o papel. Com o tempo, passei a viver das palavras e mostrar o que eu fazia tornou-se necessário. Comecei a me sentir uma striper, precisava ficar nua para ganhar a vida. E era mais do que no sentido de sobrevivência, financeiro. Para superar meus traumas, minhas tristezas, eu precisava mostrar meus textos.
Não é à toa que sempre pergunto aos escritores famosos como lidam com tal exposição. Para uns, é natural, sempre se expuseram, mesmo antes de se descobrirem escritores. É o caso da Cris Guerra, com quem falei na Festa Literária de Divinópolis (FLID). Nunca a incomodou falar sobre a vida. Elisa Lucinda, sem que eu questionasse, também disse que até quando perguntam se está tudo bem ela fala a verdade. Já Ana Elisa Ribeiro, em uma oficina da qual participei no Cefet, confessou que algumas vezes escreve, embola o papel e joga fora para proteger alguns personagens. E Leila Ferreira me falou em auto-ficção, histórias “de mentirinha” que revelam muito de nós. Eu já fiz aqui muitos contos de auto-ficção, me lembrei quando ela falou. Talvez a auto-ficção seja uma forma de ficar semi-nua.
Depois de ouvir respostas tão diferentes me senti mais a vontade com meu corpo exposto, com as palavras que me entregam. Como disse uma das palestrantes, acho que a Leila, a gente chega ao mundo nu, sem nada e vai acumulando um monte, normal é estar sem nada, leve. Daí, temos o trabalho de despir tudo de novo, abandonar alguns itens. Escrever é bem isso, tirar lá do fundo o que faz parte de mim e precisa se transformar, ser reciclado, registrado ou até desaparecer. Cheguei a conclusão de que o que deveria me incomodar não é a nudez da alma, mas o que a veste. A alma é nua e vive coberta, é hora de me despir.