Senhor medo

Senhor medo

Eu faço de tudo para você ficar quieta e em segurança. Grito todas as vezes que pisa em um chão de ardósia, lembra daquela vez que você caiu e sua mãe teve que te pegar no colo já grandinha? Minha missão de mantê-la viva me faz gritar sempre que você caminha sobre essas pedras escorregadias mesmo que secas. Por mim você nunca mais pisava num desses. Houve muito choro naquela vez.

Sim, eu também sou responsável por te mostrar vários cenários trágicos sempre que está prestes a viajar. No Carnaval de 2015 foi apenas um susto o capotamento, porém, poderia ter sido muito pior. A cada curva eu faço você tremer e gritar com quem está no volante para ter mais cuidado. Falo tanto na sua cabeça que sua mão ficar suada, não é? E as caronas com desconhecidos que nunca mais pegou? Imagine só quantos riscos deixou de correr por minha causa!

Eu também fico bravo com você. Não me dá ouvidos mais quando sai à rua. Tapa os ouvidos todas as vezes que te lembro do assalto próximo à universidade. Você me diminui, de gigante passo a um verme inofensivo. Nem parece que a arma na cabeça deixou claro que poderia morrer ali mesmo, aos vinte e poucos anos. O que acontece que ainda anda a pé pra cima e pra baixo sozinha? Desconfio que é obra do senhor Tempo, ele vive tirando satisfação comigo e impedindo que eu lembre às pessoas sobre como ficar mais tempo, veja que ironia, neste mundo são e salvo. E olha que um dos escritores que você gosta, o Carpinejar, falou uma vez que sou o sentimento com melhor memória. Modéstia a parte, sou bom de cabeça mesmo.

Só o Tempo e o Espírito de Aventura pra querer me deixar gagá mesmo. O Tempo tenta passar uma borracha em tudo de ameaçador que há, o Espírito de Aventura fala que uma vida comigo é sinônimo de uma existência sem graça. Diz até que é a mesma coisa de não viver quando você me deixa interferir nos seus planos. Daí é que eu pego umas séries na Netflix, junto com a senhora Preguiça e faço você crer que não é bem assim. Ainda me aproveito de umas histórias fictícias pra te lembrar que lá fora o perigo é enorme.

Nem vou mencionar os exames que mandou marcar ao assistir Grey’s Anatomy e o quanto chorou ao ver Derek Sheperd morto depois de um acidente de carro. Vitória dupla pra mim: te impeço de correr riscos lá fora e ainda a faço ficar mais atenta à saúde. Te atormentei com os episódios com doenças que seus familiares já tiveram. E você faz o possível pra ter uma vida saudável, né? Estou orguhoso! Sabe quando pensa que apesar disso não pode impedir tudo? Sou eu falando. Não é que goste de te ver triste, gosto de vê-la viva. A Dona Tristeza também é minha amiga. Nem entendo porque tenta me expulsar de qualquer jeito da sua vida.

Sou seu amigo, acredite! E sou poderoso, me enfrentar é um perigo. Duas vezes você tentou, uma no toboágua do Sesi e outra na maior tirolesa do país, aquela de Morro de São Paulo que cai no mar. Vê lá se eu ia deixar você correr o risco de te ver espatifar. Seus amigos nunca vão esquecer do vexame que deu. Nas duas ocasiões estava prontinha para descer, gritou até que iria processar o cara que só trabalhava ali se te empurrasse. Os outros que não me dão ouvidos gritavam pra você ir. Você desceu cabisbaixa a pé de lá, mas viva, né? Agradeça-me!

E ainda me vê como um velho rabugento, não daqueles senhorzinhos que gosta de conversar. Mas meu objetivo é sempre mantê-la segura. Não sou demais? Só você que não acha e tem desfeito de mim, chamando o Espírito de Aventura pra sua vida. Depois não vem chorar, viu? Você pode até se divertir mais com ele, só que nunca vai te proteger como eu. Volta, vem me deixar ficar mais contigo como nos últimos anos? Considere meu pedido e não fale nada pro Espírito de Aventura. Aguardo você pra uma vida longa, na calmaria que toda segurança precisa!

Escritor por Talita Camargos Veja todos os textos deste autor →

Talita Camargos é jornalista e flerta com a literatura, procura inspiração em conversas de ônibus, flores, familiares e amigos. Idealizou o Texto do Dia e publicou nos 365 dias de 2015 neste blog como desafio pessoal.

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