Carta pra ninguém
Por Simião Castro
O Ministério da Saúde adverte: não leia ouvindo “Sentimental”, dos Los Hermanos, em looping. Casos de desidratação foram associados à prática.
Nem sei porque escrevo isso. Talvez porque eu ainda me importe com você… Sim, é por isso!
Não pense que escrevo de uma vez, isso vai demorar, mas decidi que, logo que começasse, não apagaria uma só palavra do que me ocorresse nesta carta. Editar tudo depois seria mesmo muito fácil.
Pra ser sincero, ainda não sei direito porque escrevo. Por que você ainda importa pra mim? Não é só isso! Eu sei que não quero ter mais nada com você. Quis cultivar uma amizade, mas ficou claro pra mim que quem não quer nem isso é você. Ok, pra mim! Como te disse aquele dia, cada um faz suas escolhas.
Porém, não consigo olhar pra trás e ver tudo o que passamos juntos – ou ao menos o que eu passei ao seu lado – impunemente. Mexe comigo demais, até hoje. Mexe comigo também porque depois que você terminou comigo eu enxerguei uma pessoa que eu nunca tinha visto. Pela qual eu jamais teria me apaixonado, como me apaixonei.
Aquela pessoa que eu via era real ou foi tudo pura idealização minha? Eu sempre soube que você tinha problemas. Nosso namoro começou por isso! Comigo, naquela sala de estar, amparando – como tantas vezes – o choro de alguém se dizia “meio fora do normal.” Que nunca me pareceu nada disso, que só parecia ter algumas cicatrizes da vida e que depois se revelou uma pessoa tão linda, como costumávamos dizer um ao outro.
Isso! Por isso escrevo. É muito mais tentando entender o que aconteceu! Tentando descobrir quando aquela pessoa linda que eu amei se transformou tão de repente naquela outra, que foi cruel comigo quando eu chorava de desespero por perdê-la. Que ironia! Eu, que tantas vezes amparei seu choro, fui enxotado por você exatamente enquanto chorava.
Abri, outro dia, aquela foto que tirei de você. Sabe aquela que você me pediu? Fiquei olhando pra ela, analisando a luz perfeita no seu rosto. Lembrei de todo o cuidado que eu tive, de como eu queria que você ficasse bem naquela foto, porque era importante pra você. E aí lembrei de como você era quando tirei aquela foto. E de como são diferentes a pessoa dali da que existe hoje.
Aquela eu conhecia até no mais íntimo – ou achava que sim. Me fazia bem – ou, mais uma vez, achava que sim. Era alguém que eu defenderia contra o que fosse preciso, porque eu amava – e logo explico o pretérito imperfeito. Pra sempre está ali quem eu levei ao médico, cuidei na cama, dei remédio, comida, medi febre. Está quem me fez chorar de alegria e de saudade. Quem me mandava SMSs bonitinhos quando eu menos esperava.
Naquela foto está uma pessoa em quem eu acreditava incondicionalmente. Você poderia me dizer que não existia Universo além da Terra, que as estrelas que eu via no céu não existiam e eu acreditaria. O que me lembra da estrela. A estrela que eu vi cair em São Miguel das Missões enquanto olhava pras ruínas missioneiras. Pra qual eu pedi um amor. Que me deu você. E agora? Como fica? A estrela tava mentindo também? Porque, se por acaso a pessoa por quem eu me apaixonei não existia, era mentira, a estrela me deu foi isso. Uma mentira. Talvez eu devesse mesmo parar de acreditar em estrelas cadentes? É! Talvez.
Ou talvez não. Talvez não porque eu entreguei a minha vida, os meus planos e o meu futuro pra você. E aí você foi embora de mim. Talvez não porque eu pedi um amor, não um amor perfeito ou um amor eterno. Embora talvez seja eterno, e daqui a pouco eu vou explicar isso também. Aliás, eu espero que você fique feliz por isso. Tem muita gente por aí que nunca foi amada. Saiba, e lembre-se pra sempre, que você foi. Incondicionalmente.
Só que o quê você fez? Machucou esse que te amou. Ficou com tantos quanto pôde, até na frente dele. Se fez isso conscientemente eu nunca vou saber, né? Espero que não. Prefiro pensar que foi pela frustração do término. Pra me afastar de vez. Porque, olha, funcionou! Hoje eu não consigo mais olhar pra trás, pras nossas lembranças mais bonitas, sem a mancha da crueldade das suas palavras quando, por vezes, discutimos.
Apesar disso tudo – e aqui explico o pretérito imperfeito – eu ainda amo você. O amor, verdadeiro, não morre – jamais –, mas pode se transformar. E o meu amor por você se transformou naquela que talvez seja uma das formas mais puras de amor: compaixão. Não tenho como sentir se não compaixão por você. Pela pessoa que vejo hoje em você. Pela pessoa que você mostra pra mim. A pessoa que me despreza em cada olhar. Que demonstra indiferença a cada palavra dirigida a mim – a cada “oi” por obrigação e a cada “tchau” não dado.
Assim te amo e ainda me importo com você. Quer eu faça – ou tenha feito algum dia – diferença pra você ou não.
Tenha uma boa vida, seja feliz.
Ps.: E durma com esse barulho.