Questão de fé

Questão de fé

Maria era a moça mais bonita da cidade – parecia uma índia de cabelos negros, olhos pequenos e puxados. Pedro não ficava atrás – Era um rapaz alto, moreno, olhos verdes, lembrava Chico Buarque. Decidiram se casar depois de pouco tempo. Na cidade havia uma igrejinha, mas ele fazia questão de receber as bênçãos de Deus na celebração de Padre Libério, em Leandro Ferreira, distante dali menos de 50 KM. Mas naquele tempo, nos idos de 1920, a falta de boas estradas multiplicava os quilômetros por três pelo menos.

Foram de trem. Ela já com o vestido de noiva, um pouco de maquiagem, um salto que usava pela primeira vez. Os cabelos não precisou arrumar, por natureza eram lindos. Pedro vestiu o terno emprestado, colocou um cravo no paletó e pagou a passagem dos padrinhos – um casal para a noiva e um para o noivo. Ela já havia perdido o pai, ele também. A mãe de Maria enlouqueceu quando o marido caiu nos braços dela para os últimos suspiros e a mãe de Pedro queria ir, mas o dinheiro era pouco. Pensavam valer o esforço: casamento celebrado por Libério era abençoado, durava até a morte.

Disseram sim ali, em Leandro Ferreira. A igreja sem nenhuma flor, vazia, só Pedro, Maria, dois casais para apadrinhá-los e o padre que diziam ser santo. Casaram-se sem marcha nupcial, mas ficaram encantados com a beleza das palavras de Libério sobre o matrimônio. Dali foram para uma pensão, não havia mais horários de trem para voltar depois do casamento.

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Padre é considerado santo por fiéis de Minas

Acordaram felizes. Maria calçou o sapato de salto, que já lhe machucava de novo, pois havia esquecido o baixo em casa. Voltaram para a terra natal deles antes do meio-dia. Tiveram uma menina pouco mais de um ano depois. Se mudaram uma, duas, três, quatro vezes. Foram para longe, voltaram para perto e entre uma mudança e outra tiveram mais dois filhos: outra menina e um menino.

Iam todo dia 28 a missa de São Judas Tadeu, santo de devoção do casal, primeiro de Pedro, depois dela. Compraram um sítio e o batizaram com o nome do santo, fizeram uma gruta para ele, compraram a imagem mais bonita que acharam. Ele deixou de levar Maria para onde ia. Trabalhava como caxeiro viajante. Ela ficava em casa e rezava para São Judas protegê-lo, acendia velas. Também pedia intercessão de Padre Libério, homem que não foi canonizado oficialmente, mas pelo povo daquelas cidades próximas de Pitangui, em Minas Gerais.

Com o tempo, Maria viu que não amava mais Pedro. Ainda era bonito, ela também, porém os dois não se entendiam mesmo sem nunca ter brigado. Separaram-se após muito juntos. Assinaram o divórcio quase 30 anos depois de dizer sim e de ouvir até que a morte os separe da boca de Padre Libério. Imaginou que nada dele ficaria além dos filhos. Não queria, barrava cada pensamento que trazia o ex-marido, pois mesmo sem o amor do início a separação a fazia sofrer.

Porém, a devoção ela herdou. Mesmo sem o casamento ter durado a vida toda pedia ao Padre Libério bênçãos, acreditava que ele era santo, nunca deixou de ir à missa todo dia 28. E quando o ex adoeceu pediu que o santo intercedesse por Pedro e o deixasse viver mais. Os médicos diziam ser 1% as chances de ele sobreviver, mas Judas Tadeu era o santo do impossível. Não teve jeito, o pai dos filhos de Maria morreu.

Ela continuou a rezar pela alma dele e para que Deus o desse um bom lugar. Mesmo com o fim do casamento, do amor, dos pedidos não realizados, os intercessores continuam a ser Padre Libério e São Judas Tadeu. E todas as vezes que ela quer algo, sempre diz: “vou rezar pro meu Padre Libério e pro santo das causas impossíveis, eles nunca falham, quando falham é porque Deus tem planos melhores pra mim”. Questão de fé!

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Talita Camargos é jornalista e flerta com a literatura, procura inspiração em conversas de ônibus, flores, familiares e amigos. Idealizou o Texto do Dia e publicou nos 365 dias de 2015 neste blog como desafio pessoal.

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