Trem

Trem

 

Eu sonhei com você essa noite. É engraçado como as pessoas acham que a gente tá falando de algo erótico quando diz isso, né? Não é o caso.

Não foi a primeira vez que eu sonhei com você, mas parece que os sonhos sempre têm alguma ligação. Das duas vezes tinha um trem no sonho.

Não um trem de mineiro, um trem qualquer. Era um trem de verdade. Você vinha no trem cujos trilhos entravam por um túnel, porém levavam para um galpão de oficina – onde não tinha trem nenhum.

Coisa de sonhos, né? Absurdo! Você também tinha sumido, então continuei andando e atravessei o galpão. Do outro lado, uma porta muito grande dava pra um pátio de escola. Oi?

Entrei e uma menina me deu um “Olha quem apareceu!” super alegre. Fingi que a reconheci, porque não tenho ideia de quem seja, mas ela falava de você, então me deixei envolver na conversa.

Foi quando, num relance para as minhas costas, te vi chegando. Mas como meu movimento fora muito sutil, fiz de conta que não notei. Acho que você fez o mesmo, porque passou por mim e sumiu de novo.

Comentei com ela, uns minutos depois, que você chegou fingindo que não me viu e ela me apontou você a um metro de mim. Sim, você me ouviu e não fez cara boa, entretanto algo aconteceu que mudou tudo.

Um avião, ou algo do tipo, passou fazendo um rasante. Era uma nave imensa, imensa, que parecia mais feita de lego e que mudava de formato no ar, quase feito um Transformer.

O avião fazia muitas manobras e se aproximava perigosamente do chão. Mas a gente olhava num misto de naturalidade e admiração. Até que, de fato, ele tocou com violência o chão exatamente onde havia um grupinho de pessoas.

Quem pôde, correu. Mas uma mulher gritava sem parar. O avião levantou voo e foi subindo, a noite caiu de uma vez – de. uma. vez. A mulher era mãe de uma criancinha que não devia ter mais de seis anos.

O corpo da menina estava imóvel no chão, separado clara e irreparavelmente da cabeça. Os olhos da criança ainda se moviam e, apesar de obviamente não haver nada mais a se fazer por ela, o desespero – já instalado – intensificou.

Meu instinto jornalístico apitava e eu não sabia o que fazer. Saquei meu celular, mas preferi fotografar primeiro as luzes do avião, que começavam a se afastar na noite.

Eu não conseguia decidir se fazia uma foto da criança, muito menos como fazer a foto. Poderia ser um Pulitzer e também poderia ser um atentado à ética. Porém, outra coisa que me distraiu.

Você dava passos a esmo ao meu lado, sem ideia de pra que lado ir. Uma ou duas vezes senti sua mão segurando meu braço, mas soltando em seguida. E aí você falou algo.

Eu não entendi se você disse “Eu preciso ir pra minha casa dormir” ou “Você quer ir para minha casa dormir?”. É óbvio que nessa situação se a segunda frase fosse a correta nada demais ocorreria.

Entretanto, com certeza, ela significaria que você também tinha os mesmos sentimentos por mim que eu por você. E que numa ocasião traumática como aquela você também queria a minha companhia.

Entretanto, no instante em que eu olhava de volta pra cena do acidente e retornava para você EU ACORDEI! Eu perdi pra sempre a oportunidade de confirmar o que você disse.

Perdi pra sempre a oportunidade de saber se você sentia a mesma coisa por mim, o que sempre senti por você. Perdi pra sempre a chance de passar uma noite de conforto mútuo e carinho.

Ok, era um sonho. Mas fala se não é igualzinho à vida da gente?

Escritor por Simião Castro Veja todos os textos deste autor →

Simião é jornalista, repórter de política, escreve contos e crônicas. Também conta histórias em áudio, vídeo, o que você pedir, é produtor multimídia, saca um pouco de tudo. “Eu tento ser um jardineiro das palavras, um aventureiro das sílabas. Duvido de tudo e prefiro assim! As certezas me assustam. Quem tem certezas demais também”.

Oi, o que achou do texto de hoje?

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *