Saudades escaldadas

Saudades escaldadas

Hoje tentei escaldar as saudades. Quando olhei para a couve congelada picadinha na geladeira me lembrei que este era um dos sabores que minha mãe mais gostava – eu também – meu paladar herdou essa vontade por couve escaldada, quentinha. Pensei que era um gosto simples, porém minha mãe era mulher de simplicidade complexa. Constatei mais uma vez ao esquentar bastante o óleo e acrescentá-lo à couve, por estar perto do fogão vi uma pequena labareda subir, quase me queimei.

Nunca entendi como uma receita que precisa de dois ingredientes e é feita em dois, três passos pudesse dar errado. Devia ser por isso que a gente só comia couve ou alface escaldados quando íamos à casa da minha avó. Lembro de uma vez que fiz o repolho escaldado murchar na tentativa de aprender para repetir em casa. Na ocasião, minha mãe disse para evitar fogo.

Se aqui ela estivesse diria pela quinquagésima vez: “Menina, prefiro você longe da cozinha, tenho medo que um dia se machuque”. Eu iria ficar chateada por saber que sou um pouco desajeitada e falaria que ela nunca me incentiva a fazer nada. É duro reconhecer o que é torto na gente e mãe tenta mostrar pra aceitação ou melhorar.

Mas a experiência de hoje acabou com vários pedaços de “couve” caídos no fogão, porém ela não murchou, parecia estar boa e a maior parte ainda estava dentro da panela. Todo o desajeitamento, início de incêndio valeriam a pena, meu desejo era comer a matar as saudades junto com a vontade. Foi isso que eu pensei até começar a mastigar aquela coisa verde. Não era couve, mas alguma dessas folhas verdes escura, até agora não sei qual. Estava até gostoso, entretanto distante do gosto que achei que iria sentir.

O sabor diferente do que eu achava que sentiria era de realidade. O que deu em mim achar que podia escaldar as saudades como quem escalda couve ou alface?

Talvez, ao saborear a couve escaldada a saudade até aumentaria. É incerto se eu ia sorrir com a lembrança ou se meu almoço teria como acompanhamento lágrimas. Fiquei com mais saudades. Ela também não tinha a manha de escaldar a couve, mas com certeza minha avó prepararia se fôssemos até a casa dela. Agora tô com mais vontade de couve escaldada, alface na gordura quente e de ter a minha mãe aqui do lado para curtir esses sabores e dessabores na cozinha.

 

 

 

Escritor por Talita Camargos Veja todos os textos deste autor →

Talita Camargos é jornalista e flerta com a literatura, procura inspiração em conversas de ônibus, flores, familiares e amigos. Idealizou o Texto do Dia e publicou nos 365 dias de 2015 neste blog como desafio pessoal.

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