O encantamento do que insiste em dizer algo

O encantamento do que insiste em dizer algo

Há objetos, pessoas e ideias que parecem nos perseguir como se quisessem dizer algo muito importante. São aquelas imagens que se tornam pontos fixos, como o pedaço de madeira, aos pés de uma cachoeira em São Thomé das Letras que insistia em chamar atenção de Alex. Neto de GTO, filho de Mario Teles, olhar um pedaço de madeira com outros olhos parecia natural. Ele via uma beleza nela que só o pai e o avô seriam capazes de enxergar.

A beleza do pedaço era tão grande que ele tentou tirá-lo, porém parecia que ele estava enraizado ali, como ele em São Thomé. Começou a criar raízes aos 15  e aos 41 os encantos com aquela terra cercada de mistérios continuavam a ser fortalecidos. Alex olhava pra madeira com a mesma insistência que colocava o
olhar nos cartões postais mais famosos da cidadezinha.

E de tanto olhá-la, ela passou a prestar atenção nele também. Sabia que era frequentador de São Thomé, tomava banho de cachoeira cedo, gostava de sentir a natureza e a vida. Em uma conversa de Alex com alguns amigos, soube até que ele tinha uma intimidade maior com as madeiras, uma história que carregava no sangue junto aos genes.

Em um dia de muita chuva e ventania, depois de uma tarde em que observou o rapaz, decidiu ir ao encontro dele. Pediu ao vento forças e fez um pequeno esforço para sair. Durante horas percorreu o caminho guiada pelas pegadas de Alex e só parou em um muro que cercava a pousada em que ele se hospedava. Ainda era madrugada quando chegou. E antes que o sol saísse, Alex se levantou, e ao espreguiçar mal podia acreditar. Ali parecia estar a madeira que ele observava há 26 anos, em um formato parecido com banco.

Com olhos de quem herdava o conhecimento da geração GTO, sabia que não estava diante de uma madeira comum e que em São Thomé das Letras não existiam raridades como aquela parecia ser. Antes de procurar uma explicação, deixou ficar na rua e ver a Folia de Reis, uma das manifestações que a família mais gostava. Viu o padre com as crianças do lado, os homens com os instrumentos logo atrás colorindo a rua.

Depois disso, foi até a cachoeira e confirmou a sandice que pensava – a madeira não estava mais lá. E como quem age com uma sabedoria instintiva, procurou um historiador. A suspeita era que a madeira tivesse parado ali há séculos, quando os escravos roubavam cargas de madeira para poderem sentar nas igrejas atrás de todos os brancos. As cargas viajavam de carro de boi. E depois de um exame mais detalhado, na universidade, a suspeita se confirmou. Aquela madeira era um Vinhático Manchado, tinha em média 4oo anos e batia com a suposição do historiador.

O pedaço de madeira ficou com Alex. A intenção era levá-la para o pai escultor para dar-lhe ainda mais significado. Só que ao retornar para Divinópolis mal teve tempo e já precisou partir.  Quando voltou foi surpreendido pela pergunta do pai:

– Onde você achou esta madeira? 

– Em São Thomé, estava jogada perto da pousada em que fico, mas sempre a observei perto de uma cachoeira. 

– Seu avô era louco com esta madeira, mas nunca achou, é um Vinhático, raro. 

E a surpresa maior veio quando ele viu o que o pai esculpiu.

Era a representação da Folia de Reis, do jeito que tinha visto quando encontrou a madeira. Na frente, um padre com dois meninos, atrás, a guarda, com todos os instrumentos que ele viu.

A madeira, quando pediu forças ao vendaval, sabia que iria para mãos que a eternizariam, fariam jus à história e qualidade dela. E a peça jamais ficará na geração GTO – abriga histórias de escravos, de São Thomé, de GTO, Mário e Alex Teles. É a eternidade esculpida, vontade que se concretiza mesmo depois de um dos que desejou fazer arte com a madeira ver de um plano ainda desconhecido pra gente.

Escultura de Mário Teles - filho de GTO

Peça esculpida com a madeira encontrada em São Thomé das Letras

Peça de Mário Teles em madeira

Parte de trás da escultura

Escritor por Talita Camargos Veja todos os textos deste autor →

Talita Camargos é jornalista e flerta com a literatura, procura inspiração em conversas de ônibus, flores, familiares e amigos. Idealizou o Texto do Dia e publicou nos 365 dias de 2015 neste blog como desafio pessoal.

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Você tem 5 comentários
  1. Fernanda F. Goulart at 23:51

    Oie. Confesso que, ao chegar ao final do texto, não sei muito bem o que falar sobre ele, mas adorei a introdução e a proposta do mesmo me pareceu magnífica. Quando comecei a ler achei que se tratasse de algo totalmente sem sentido, porém ao chegar no final me vi encantada com cada palavra. Parabéns pelo texto!

    Beijos,
    Fernanda Goulart
    imperioimaginario.blogspot.com

  2. Giselly Karla at 12:56

    Vou ser sincera, comecei a ler e não estava entendendo nada, não via sentido nenhum, mas depois as coisas foram ficando mais claras e o final foi bem esclarecedor. O texto é maravilhoso e você escreve bem. 😀

    Abraço!

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