Renda abençoada para o futebol dos meninos

Os dois amigos eram de famílias numerosas. A quantidade de irmãos, inversamente proporcional ao dinheiro que tinham. Por isso, as brincadeiras sempre eram aquelas que não se gastava quase nada ou nada. Só que de tanto ver o que Pelé, Dadá e outros faziam com a bola, Mário Zan,  11 anos, e Julinho, 13, começaram a sonhar com um time de futebol. Jogar bola era mais que brinquedo, a esperança de brilhar um dia como eles, mesmo que fosse nos gramados de Pitangui, onde moravam e região.

Só que era preciso pelo menos uma bola de capotão para fundar o time. Campo tinha aos montes e qualquer coisa, a rua se tornava um campinho improvisado. Mas e a bolota, como fariam para comprar?

Tinham a solução. Vender picolé e chup-chup já era fácil e dava para levantar uma grana. E eles estavam com sorte. A Semana Santa se aproximava, prometia muita gente com calor nas procissões. Mário Zan e Julinho encheram a geladeira com a mercadoria. E foram inteligentes: para fugir da concorrência, iriam para Ibitira, ali perto, para lucrar mais. Já haviam morado lá, conheciam todo mundo, os potenciais clientes.

Assim partiram com a caixa de isopor cheia. Os dois estavam tão felizes com o sucesso das vendas que entre um cliente e outro acompanhavam as músicas religiosas e as preces. Era um louvor naquele dia que tudo parecia conspirar a favor dos meninos. No céu, o sol brilhava solitário, sem nenhuma nuvem para companhia. O povo se refrescava e agradecia aos meninos de estarem ali.

Só que à frente da procissão estava padre Marciano, conhecido por ser sistemático além da conta. Quando escutou o preço do picolé, ele largou o comando,  viu pecado na atitude dos meninos. Deixou um ministro no lugar e correu atrás dos vendedores. No meio do caminho, quase que ele pisa na batina de tanta pressa. Chegou e antes que Julinho perguntasse de qual sabor o padre iria comprar ele esbravejou:

— Vá roubar do povo na sua paróquia, na minha não. Onde já se viu um picolé desse preço?

— Padre, é porque a gente veio de longe – justificou Julinho.

O argumento do menino não foi suficiente. Sem falar palavrão, o padre pegou pesado com os dois moleques. Só parou quando Vicente, tio do Julinho, chegou.

— Marciano, você sabe que os dois são de família humilde, só estão defendendo os deles. Deixa os meninos ganharem uns trocados, tem nada de pecado nisso – defendeu.

E o padre cuspiu mais alguns marimbondos, mas largou o osso pelo cansaço.

Quando ele se afastou, Mário Zan fez uma recomendação.

— Julinho, não podemos nem sonhar em falar pra que é esse dinheiro, o padre roga praga, dizem que um homem caiu do cavalo dia desses por causa dele, vamos deixar baixo.

Foi assim que seguiram, abriam a boca só para perguntar se o povo queria chup-chup ou picolé e de que sabor, além de dizer obrigado. Por via das dúvidas, era bom deixar o sonho longe dos ouvidos de Marciano.

No final da procissão, sentaram no meio-fio e a felicidade. O dinheiro era suficiente e ainda sobrava um pouco para a bola de capotão. Foi aí que surgiu o Nacional Futebol Clube, alegria de Julinho, Mário Zan e outros 20 meninos. Toda vez que precisavam de verba, já sabiam, enchiam a caixa de isopor e vendiam picolés e chup-chup em Ibitira, sempre com o cuidado de não revelar para o que era. Longe dos agouros do padre e ainda acompanhando a novena e os cânticos, o lucro era garantido. Nada segurava os bravos jogadores do Nacional de Pitangui!

Escritor por Talita Camargos Veja todos os textos deste autor →

Talita Camargos é jornalista e flerta com a literatura, procura inspiração em conversas de ônibus, flores, familiares e amigos. Idealizou o Texto do Dia e publicou nos 365 dias de 2015 neste blog como desafio pessoal.

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