Recado dado

Recado dado

As duas se amavam. Moravam juntas há anos. Sofreram quando a separação foi inevitável. Marília ficou na rodoviária com o coração partido e muitas lágrimas no rosto. Débora se desfazia dentro do ônibus, porém sorria quando pensava nas novidades que a aguardavam na cidade nova. Até então quase não brigavam e ninguém sabe explicar como começaram os desentendimentos.

Todas as vezes que Débora ia visitá-la chorava, prometia não voltar em pelo menos dois meses para Marília sentir falta, valorizá-la. Planos frustados, retornava em um mês ou menos. E era apontar no portão que a outra logo dizia que ela estava gorda, desleixada. Sem nenhuma vaidade afirmava que a outra precisava se vestir melhor, se incomodava com o jeito que ela mastigava, andava, se movia. Débora aguentava em silêncio em nome do amor imenso das duas.

Ia dormir aos prantos e quando quase pegava no sono Marília lhe dava um beijo. Débora fingia não ver. Mal sabia ela que era isto mesmo que Marília queria, manter a pose de durona, mas por não resistir a um carinho, por amor Débora demais a beijava em silêncio depois das brigas sem fundamento.

Chegou um momento que Débora cansou de ficar calada, começou a retrucar. No início se arrependia, depois começou a achar normal responder. Só que mesmo após o arrependimento não acompanhar a briga, ela queria dizer palavras doces para Marília. Durona que era, pelo menos na pose, mantinha-se firme.

Chegou a achar que o certo era o relacionamento a distância. Nos finais dos telefonemas sempre havia um “Eu te amo” e um “eu também”. Débora suspirava quando ouvia, principalmente se precisava apenas responder.

E tinha mais: se alguém falava mal de Marília, Débora fechava a cara. Às vezes até concordava, mas não admitia. As brigas eram muitas, entretanto o amor bem maior. Para garantir que Marília soubesse escrevia cartas, bilhetes de amor todas as vezes que mandava alguma encomenda para ela. Nos aniversários, datas especiais os cartões também transbordavam das palavras que os conflitos roubavam. Débora sempre pensava quando acabava de escrever: “recado dado”. Marília retribuía, sempre.

Algumas épocas foram menos turbulentas, outras mais. Entretanto, independente de brigarem, sempre por motivos bestas, se amaram até depois do fim. E quando Marília se foi ficou a certeza de que tudo tinha sido dito – conselhos duros e te amos. Eram mãe e filha como tantas outras, que se amavam acima de tudo.

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Talita Camargos é jornalista e flerta com a literatura, procura inspiração em conversas de ônibus, flores, familiares e amigos. Idealizou o Texto do Dia e publicou nos 365 dias de 2015 neste blog como desafio pessoal.

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