Quando tive que me obrigar a fazer o que gosto

Quando tive que me obrigar a fazer o que gosto

Na infância e boa parte da adolescência, não havia erro, eu sempre tinha um tempinho para fazer o que eu realmente gostava. E eu estava decidida: nunca iria parar de fazer as coisas que amava. Elas até norteariam minhas escolhas profissionais. De fato foi isso que aconteceu. Bem, em partes. Escolhi o jornalismo para nunca me desgarrar da escrita e boas histórias. Só que o tipo de texto que eu mais gostava começou a ter um espaço cada vez menor na minha vida. Os prazos para entregar matérias, artigos empresariais e tantos outros tipos engoliram o tempo para eu me dedicar à escrita livre. Sim, eu adoro conseguir viver alimentada pelas palavras, fazer do verbo carne, transformar o que clientes pensam em mensagens persuasivas e relevantes, no entanto, os textos que eu podia chamar de meus começaram a ficar cada vez mais raros.

Sair de casa quase se transformou em cumprir agenda cronograma de trabalho também. A agenda não comportava os programas que eu realmente gostava. Para pagar as contas, em uma época que graças a Deus passou, eu aceitava trabalhos que me consumiam demais com o que eu não me identificava tanto. Foi quando as dores musculares, de cabeça e existenciais começaram a ficar agudas que me perguntei o que eu fazia que realmente dava gosto. Não gastei os dedos de uma mão para contabilizar. Me senti triste, muito triste.

Lembrei de como os cadernos eram meus companheiros, do quanto eu lia mais literatura em vez de livros técnicos e de como minha agenda tinha passeios e não apenas compromissos. Fiquei pensando quando é que deixei a vida me levar tanto e de certa forma para um lugar que eu queria estar. Porém, sentia falta de um pouco do meu comando. Eu não tive dúvidas de que precisava mudar imediatamente. E eu estava em uma rotina tão louca que precisava de tempo para conseguir me desvencilhar dos excessos, largar os fardos. Fiz um pacto comigo – o Texto do Dia foi um deles para eu poder escrever sem pauta. Comecei a comprar livros literários e reservar intervalos no trabalho pra ler. O que selecionei profissionalmente para me dedicar ficou mais leve e aprendi a falar NÃO, palavra extremamente difícil, necessária e libertadora.

É meio louco isso, precisar me obrigar, colocar na agenda os hábitos que me fazem feliz. Mas se eu deixasse tudo por conta da vida, seria arrastada para um caminho tortuoso demais, desgastante e parecido com o que sonhei. Era bem provável de eu achar que tinha chegado exatamente onde queria e que o cansaço e falta de tempo para o que gosto ser um preço que eu tinha que pagar. Não é. Quem diz sim para tudo que aparece acha que recebe um presente e na verdade cai em uma armadilha. É preciso mesmo saber ver o que realmente é bom, o que deve-se dosar e como cuidar para não deixar ir embora o que é libertador.

É bem estranho, porém fazer o que se gosta nem sempre é fácil. Ter a vida que se sonha dá trabalho e exige muito mais vigilância do que se pensa, pois a vida adulta é uma devoradora voraz e sutil. Enganou-me fácil, fácil. Hoje já não consegue mais.

Escritor por Talita Camargos Veja todos os textos deste autor →

Talita Camargos é jornalista e flerta com a literatura, procura inspiração em conversas de ônibus, flores, familiares e amigos. Idealizou o Texto do Dia e publicou nos 365 dias de 2015 neste blog como desafio pessoal.

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