Ondulações da memória

Olho para os cabelos encaracolados e vejo a minha mãe. Sei que quando a mulher das madeixas se virar, verei um rosto completamente diferente. Porém, gosto de olhar os fios enroladinhos, senti-la na memória e ter a sensação de que a verei. Me iludo, de propósito, finjo que é ela quem está ali. Penso no quanto fiquei feliz quando ela abandonou a fase de querer escovar o cabelo toda semana e é como se eu voltasse naquele tempo. Fisicamente, o cabelo enrolado era o que ela tinha de mais marcante, as ondas dela me hipnotizavam quase como o mar.

Eram cachos que começavam na raiz e desciam até o fim do fio, em parafuso. Emolduravam, de forma perfeita, o rosto fino, com o nariz bem feitinho, os olhos grandes, bem expressivos. Ela não acreditava na beleza que tinha, eu ficava fascinada principalmente com os cabelos ondulados.

E sempre me contam que o fascínio começou quando eu era bebê. Por causa do frio dos Estados Unidos, que me deixava muito doente, me mandaram de volta para o Brasil. Primeiro, fiquei uns dias na casa da minha tia, em Belo Horizonte. Ela tem os cabelos bem lisos, como de índia. Para minha sorte, permanente era moda. Ela encaracolou os cabelos e eu a reconheci como mãe. Até morder minhas primas, filhas dela, eu mordia de ciúmes. Ela pensou que eu já mostrava a importância dela na minha vida até o dia que vi outra mulher, na fila do supermercado, com o cabelo em cachos. Eu estava com outra pessoa e não parava de chamar pela minha nova “mãe”.

Depois passei uma temporada maior com a minha avó, mais índia ainda que minha tia e que não aderiu ao permanente. Mas, minha outra tia estava ali para eu me agarrar aos cachos dela. Na rua, era ainda mais fácil, o permanente estava mesmo no auge e eu vi muitas mães. Era até difícil explicar porque eu apontava para elas mesmo no colo de quem fazia o papel da dona Neuza.

Hoje me vejo como criança sem mãe novamente. Já entendo mais, porém tenho a sensação de estar tão a mercê da vida sem ela quanto como eu era uma menina quando a saudade aperta. Sei que é por isso que às vezes viajo nas ondas negras dos cabelos que vejo nos bancos, nas plateias anônimas do teatro. Torço para que as donas dos cachos não se virem tão cedo, os fios dão mais vida às minhas memórias.

Quando elas ficam de frente para mim, procuro um rosto fino, um nariz bem feitinho e os olhos expressivos. Às vezes tenho a sorte de encontrar, brinco um pouco mais, noutras não. E sempre que as mulheres de cachos negros vão embora, vejo o céu, coloco a mão no coração. Na verdade é nesses lugares que ela está, embora também esteja nas recordações.

Escritor por Talita Camargos Veja todos os textos deste autor →

Talita Camargos é jornalista e flerta com a literatura, procura inspiração em conversas de ônibus, flores, familiares e amigos. Idealizou o Texto do Dia e publicou nos 365 dias de 2015 neste blog como desafio pessoal.

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There is 1 comment for this article
  1. Aniany at 14:44

    É como diz Roberto Carlos: “Debaixo dos caracóis dos seus cabelos, uma história pra contar, de um mundo tão distante”. Uma música linda, com uma letra inconfundível e que retrata a real história de muitas mulheres. Lindo texto. Beijo linda.

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