O dia que dona Márcia descobriu o que era nude

O dia que dona Márcia descobriu o que era nude

Eles insistiram. Márcia lutou com todas as forças. Cedeu, início dos problemas. E por isso mesmo soltou um palavrão no meio do teatro lotado: “Eu falei que não queria esse tal de smarthphone, um telefone que fizesse ligação bastava”, completou depois de mandar uma palavra de baixão calão no meio de uma plateia cult, que assistia a uma peça russa. A essa altura, todos já haviam tirado os olhos do palco e a olhavam, Márcia tornou-se o centro. Saiu sem conseguir colocar o telefone no silencioso, ainda conversava, brava com o filho mais moço. Só assim o espetáculo continuou, depois do dela.

Márcia chegou em casa quase aos prantos, trêmula. Os filhos não entendiam o drama. O caçula explicou que ligou insistentemente porque queria saber onde ela estava, pois ficou preocupado com o adiantar da hora e nada da mãe aparecer. Ela também não tinha respondido às mensagens no grupo que os filhos criaram. Uma viúva não podia ficar perambulando sem dar sinal de vida, onde já se viu? Deixou os filhos loucos! Foi esse motivo de o telefone tocar uma, duas, três vezes até ela atender, brava, muito brava. Perdeu a peça, e a cabeça, ficou com fama de deselegante.

— Ah, meu filho, eu estava no teatro, não podia atender. E você não podia esperar? Se não atendi é porque não podia, ué!

— Mãe, você sumiu a tarde toda. Mandei mensagem antes. Por que não colocou o telefone no silencioso e olhou o grupo?

— Vocês acham que é assim, né? Um telefone cheio de funções, com poucos botões. Bem que procurei, mas quem disse que achei o lugar de colocá-lo no silencioso? Esse tal de grupo nem sei onde é que fica também. Se eu tivesse com meu telefone antigo nada disso teria acontecido, eu falei que não queria esse tal de iPhone.

Os garotos tentavam argumentar e nada de ela entender. Também se dispuseram a ensinar e ela, ofendida, envergonhada pelo episódio do telefone no teatro, prestava atenção em tudo. Cismou que já sabia e até criou um grupo com as amigas. Adorava mandar vídeos, piadas no WhatsApp, era divertido. Por que não tinha aprendido antes? Perdeu um paraíso por muito tempo!

E lá foi ela para o teatro assistir à peça que abandonou na metade. Colocou o telefone no silencioso. Ufa, agora ela podia ver e responder todo mundo sem deixar ninguém preocupado. Só que no grupo das amigas, criado por ela, mandaram um vídeo com sussurros e o que ela fez? Crente de que ela só iria ver, pois o telefone estava no silencioso, deu o play. Todo mundo da fileira olhou ressabiado para ela. Onde já se viu uma senhora ver pornografia no teatro?

Mas desta vez ela foi mais esperta. Deu um risinho de lado e guardou o maldito na bolsa, ficou até o fim. Quando saiu de lá, quase ninguém se lembrava, só um funcionário, Osvaldo, que a reconheceu. Mais velho, da idade dela, ele fez um convite.

— Boa noite, linda dama. Pode me passar seu WhatsApp?

Empolgada com o pretendente, ela passou. Quando já estava em casa, com o telefono “no barulho”, como ela gostava de falar, chegou uma mensagem: “Aqui é o Osvaldo, do teatro. Vi que a senhora é bem moderninha, manda nude, não mostro pra ninguém”.

Sem saber o que era nude, ela perguntou ao filho, já mostrando a mensagem.

— Filho, não entendo essas palavras que o povo manda. Me diz aqui, o que ele quer?

Agora ele que se enfurecia. Não queria que a mãe usasse o WhatsApp de jeito nenhum.

— Vou é confiscar esse telefone, nude, onde já se viu.

Só que a esta altura era ela que não dava conta de ficar sem o telefone mais. Prometeu bloquear o pretendente e jurou que não sabia porque ele dizia que ela era moderna. Amansou o filho. O problema, no fim das contas, ela decretou – era o teatro. Nunca mais foi e ficou feliz para sempre no admirável mundo novo da internet! Assistia tudo que queria no YouTube em vez de se arriscar na plateia.

 

Escritor por Talita Camargos Veja todos os textos deste autor →

Talita Camargos é jornalista e flerta com a literatura, procura inspiração em conversas de ônibus, flores, familiares e amigos. Idealizou o Texto do Dia e publicou nos 365 dias de 2015 neste blog como desafio pessoal.

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