Neologismos: palavras cansadas do dicionário

Neologismos: palavras cansadas do dicionário

Minha vó vive dizendo-se sem estudos, mas me surpreende com uma sabedoria que doutor nenhum tem. Sem saber corrige até os dicionários. Quem é Aurélio perto dela! Eu, que deixo as correções para quando tenho a função de revisora, anoto as palavras dela no meu caderninho como certas. Tenho vontade até de usá-las em vez de sucumbir ao que a norma diz padrão.

Muitas vezes as palavras do dicionário são pouco graciosas diante do que o povo diz, especialmente se é a vó Zeni quem fala. As expressões populares têm mais vida.Como o verbete que ela mais usa, remédio faixa preta. Aaaaah, sinto cócegas nos ouvidos quando ela fala. Como dizer para ela que o certo é tarja preta? Faixa preta diz muito mais sobre os medicamentos com esta classificação. Parece-me bem mais correto do que tarja.

Na minha imaginação até consigo ver os comprimidos todos com quimono e a faixa que indica a maior graduação em vários esportes das artes marciais. Há duplo sentido para a expressão, ambos certíssimos. Pode ser um remédio muito poderoso, forte, que derruba as doenças para as quais é indicado.

A expressão também toca na ferida de um faixa preta poder derrubar. Deixar zonzo, no chão, golpear quem chega perto. Tarja me soa suave demais para os soníferos pretos, por exemplo. Uma vez, tomei um quarto de um desses e acordei 12 horas depois sem saber o que acontecia direito. Eu, que já lutei caratê, senti que havia sido nocauteada por um comprimido faixa preta.

Hoje ela corrigiu outra palavra lindamente!

Foi contar que um certo fulano está doente. A justificativa era a vida acidentária. No alvo, hein, dona Zeni? Alguém acidentário está propenso a várias tragédias na saúde mesmo. Imaginei a pressão em carros sem revisão e há tempos parados na garagem. O triglicérides e toda a tropa também estavam lá, prestes a colidirem por uma falha mecânica.

Sedentário perdeu as forças diante da correção que minha avó fez.

Eu coloco todas as palavras no papel para que a memória não me traia. São gostosas, mais corretas do que as que o dicionário propõe, têm a força que um grito com as expressões originais jamais conseguiriam. Imagine só:

“Menino, não leve uma vida tão acidentária!”. 

“Oh, seu Zé, tente a homeopatia antes de tomar os remédios faixa preta”.    

Garanto que o menino e o seu Zé dariam muito mais ouvidos a quem usasse os verbetes do que as palavras originais. Pra mim, perderam a graça e dizem menos do que as cunhadas pela minha avó.

E ela ainda vem me dizer que nada sabe da vida, só fez a quarta série. Porém, tenho certeza que Guimarães Rosa e Marcos Bagno adorariam uma tarde com ela e tomariam nota de cada palavra que ela inventa.

Os neologismos criados pelo povo sem nem saber dizem muito mais do que as definições de dicionaristas, o estudioso e o escritor sabem. Penso que acontecem quando as palavras se cansam da seriedade do dicionário e procuram a primeira pessoa criativa para sorrirem.

Neologismos são palavras fantasiadas. Como as pessoas que se fantasiam, ganham mais cores e graça se estão com outra roupagem. Elas sempre acham minha avó para vestirem uma fantasia legal. Ainda bem, pois bailo com elas ao redor de uma mesa com cafezinho em um eterno Carnaval da língua do povo!

Escritor por Talita Camargos Veja todos os textos deste autor →

Talita Camargos é jornalista e flerta com a literatura, procura inspiração em conversas de ônibus, flores, familiares e amigos. Idealizou o Texto do Dia e publicou nos 365 dias de 2015 neste blog como desafio pessoal.

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Você tem 2 comentários
  1. Juvenal Bernardes at 17:10

    Ê, gostosura de língua. Camões, Rosão, Mia Couto e todas as pessoas na pessoa do Pessoa que falam segundo a (anti)gramágica (a não dramática), que falam gostoso o nosso português… Isso é brasileiro, já passou de português! Delícia de texto. Vai pras minhas aulas de interpretação de texto. Viva!

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