Muito além da braveza de dona Geralda

Imagino que ser professor em Ibitira seja diferente. A cidade (sim, pra mim não é distrito) só tem uma escola e um Centro de Educação Municipal de Ensino Infantil (Cemei), para os pequenininhos. No meu tempo não, a Escola Estadual Padre Nonô era responsável desde o pré até a oitava série, anos mais tarde pelo segundo grau também. Então, além de convivermos com os professores e colegas em sala, nem era preciso esperar o outro dia para vê-los.

Lugar pequeno como é, continuávamos as brincadeiras nas ruas, praça, casas… Com os professores, encontrávamos no supermercado, nas lojas, enfim, não era muito difícil. Mesmo depois deles deixarem a turma que estávamos, o vínculo continuava. Por isso, tudo que acontece a eles tem um peso diferente.  Foi assim hoje quando contaram que a dona Geralda havia partido.

Ela foi minha professora no pré de seis ou de sete, não lembro. Minha primeira ou segunda professora, a memória não me dá firmeza para confirmar com exatidão. Ela e a irmã, dona Rosângela, seguiram na vida minha e dos alunos. Ficaram muitos anos à frente da escola, como diretora e vice. Eram conhecidas, principalmente a dona Geralda, pela braveza. Pulso firme necessário, pois a galera não era fácil. Muitos confessam que só iam na escola por causa da merenda (era de lamber os beiços mesmo). Outros falam que adoravam os ensaios do Sete de Setembro para saírem de sala, é mole?

Mas só hoje eu percebo que elas tinham o lado liberal. Na minha sala, Robert e Isaías formavam a Marmita e Marmota – uma dupla idiota (era o slogan deles). Colocavam chapéu de palha e invadiam as aulas com violão, músicas sertanejas. Nem me lembro em qual contexto, porém, tinham o espaço deles. Acredito que as diretoras já deviam reconhecer talentos ali. Isaís hoje tem outra dupla, Robert é tatuador. E me lembro bem que muitas vezes os cadernos dele tinham mais desenhos do que anotações. Eu tinha um tal de Grupo de Proteção à Natureza, entrava em todas as salas para falar do projeto que nunca tomou corpo de verdade. Mas eu e os integrantes, Saulo, Neuzinha, Emy e não me lembro mais quem, entrevistávamos o gari da cidade, Marinho; e o Cabo, repetidas vezes, sei lá porquê. Eu já gostava de histórias e de prosear. Elas deixavam eu mostrar para o resto da escola, que chatice devia ser rs para o meu público.

Tenho certeza que o tamanho de Ibitira permite aos professores nos conhecerem bem melhor. Como sabem do que se passa com cada família, fica mais simples saber os talentos que ultrapassam a escola e dar liberdade. Permite ainda entender porque um aluno não vai tão bem se houver algum motivo externo. É claro que a Escola Estadual Padre Nonô sofre com muitos problemas próprios das instituições públicas de ensino. No entanto, creio que a proximidade com os alunos, além dos muros, é um diferencial dos professores de Ibitira.

E quando um professor se vai, feito a dona Geralda, nessa manhã de domingo, a história volta e vai um pouco com elas. A gente vê o que a nossa meninice e adolescência não permitiam enxergar – o quanto a braveza, o pulso firme, eram necessários, como ela e muitos outros foram importantes para a formação de vários ibitirenses. Vai uma infância em que a escola era mais parte da vida do que em qualquer outro lugar, já que as mesmas pessoas que víamos ali, estavam nas ruas, na praça, no supermercado com a gente. O convívio em sala tinha um papel central.

Vai alguém que não só ensinou as primeiras letras e números, mas entendia porque tínhamos mais ou menos facilidade. Vai quem conseguiu dar espaço para brincadeiras que revelam muito de quem somos hoje. Vai para um descanso merecido, porque nós, alunos da Padre Nonô, já demos muito trabalho para a dona Geralda aqui. E que vá com Deus. Sei que ninguém precisa pedir perdão pela bagunça, pois ela sabia exatamente porque cada um era do jeito que era.

Escritor por Talita Camargos Veja todos os textos deste autor →

Talita Camargos é jornalista e flerta com a literatura, procura inspiração em conversas de ônibus, flores, familiares e amigos. Idealizou o Texto do Dia e publicou nos 365 dias de 2015 neste blog como desafio pessoal.

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Você tem 4 comentários
  1. Neusa Silva at 4:59

    Bom tempos, bons momentos e hoje belas lembranças…
    Parabéns pelo texto, Talita!
    D. Geralda pra mim foi um exemplo de mulher guerreira, determinada, corajosa e também muito temida. As maiores broncas foi ela que me deu. Sem contar os passeios que ela me proporcionava até a temida secretaria.kkk
    Ela partiu, mas deixou-nos a saudade e as lembranças dos momentos que juntos passamos, e também o legado de um aprendizado para a vida.

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