Estranho familiar

Estranho familiar

Entrei no ônibus e o trocador começou a desabafar. Eu vi verdade e sofrimento nos olhos dele. Sentei na cadeira mais próxima. Ele não se incomodava de contar tudo aquilo para uma estranha e nem que os outros passageiros também ouvissem. O trocador, também um estranho, só se calava para liberar a roleta, receber. Vi gente largar o fone de ouvido para saber do que se tratava.

Eu, escolhida para ser a confidente, pouco comentava. Em parte porque estava assustada com a história e não o conhecia bem. Desconfio que nem em conversas com meu melhor amigo escutei tão atentamente.
Cheguei a pensar em ir até o ponto final, porém minha lista de tarefas me esperava.

Desci do ônibus com a sensação de ter levado socos no estômago. Fiquei me perguntando porque ele me escolheu para ouvi-lo. Pode ser que fui a primeira a não ignorá-lo, penso que não fui a primeira candidata. Existe a possibilidade de ele ter desejado desatar os nós na garganta com o primeiro que aparecesse e permanecesse. Nada melhor que um desconhecido, receoso de interrompê-lo por não saber a possível reação.

Um estranho é um bom ouvinte de desabafos porque diferente dos amigos e familiares nunca teve contato com a história, por isso ouve com mais paciência, julga menos. Se julga, na maioria das vezes, fica calado. O próprio desespero, urgência em falar, é um pedido de silêncio para o ouvinte.

Um estranho porque se ele escuta é por solidariedade, não me conhece, inexistem os laços de amizade e sanguíneos. Por nunca ter visto o estranho, pode sentar na cadeira mais longe dele, sem cerimônias, quem fica é porque vai ouvir.

Há épocas que tudo que preciso é alugar alguns ouvidos pras feridas fecharem mais depressa. Em alguns momentos os conhecidos se cansam, mudam de assunto, falam de frivolidades. Daí faço que nem o trocador, falo com gente que nunca vi e provavelmente não verei de novo. Uns estranhos colocam fones, outros oferecem o ombro, o silêncio dos que sabem acolher.

Na maioria das vezes saio do ônibus, fila do banco, sem saber o nome do ouvinte, ele também não me pergunta. Do trocador desconheço o nome, não era o mais importante. Sei de coisas muito mais profundas, íntimas. Se um dia eu entrar em um ônibus em que ele esteja na roleta não vou puxar assunto, o deixarei a vontade, pois ele não precisa de alguém com perguntas, muito menos julgamentos – apenas de um ouvido, olhos atentos e silêncio da outra parte.

Escritor por Talita Camargos Veja todos os textos deste autor →

Talita Camargos é jornalista e flerta com a literatura, procura inspiração em conversas de ônibus, flores, familiares e amigos. Idealizou o Texto do Dia e publicou nos 365 dias de 2015 neste blog como desafio pessoal.

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