Joelhos

Joelhos

Muito difícil eu passar por aquela rua. Não faz parte do meu caminho habitual do dia a dia. E também não é a ligação preferencial das duas avenidas que eu tava usando.

Mas, né, naquele dia específico calhou de eu ter que passar por lá. Daquelas escolhas inconscientes que a gente faz aos montes, não raciocina e só segue.

Já tava começando a anoitecer, mas eu tava indo atrás de uma pauta que precisava fechar. Era a última apuração do dia, in loco. Alguns postes já iluminavam a rua brigando com a o sol que ia embora.

Numa das calçadas a concentração de árvores tampava as duas fontes de luz, e foi com certa surpresa que eu notei duas pessoas ali embaixo.

Ela tava sentada na beirada de um alicerce, em que se apoiava a grade que lhe subia pelas costas. Ele tava ajoelhado aos pés dela, segurava-lhe uma das mãos – mas as expressões iam longe de um pedido de casamento.

Eles também meio que se assustaram de me ver, mas esperavam o quê? Eu sei que dificilmente eles escolheram ter uma DR naquele lugar, mas, uai, era o que tava rolando!

Passei bem rápido, procurando não encarar ninguém, não olhar pro lado, fingir que não vi mesmo. O constrangimento tava meio generalizado, alastrado em todo mundo.

Porém, depois que passei eu fiquei refletindo sobre o que é que tinha acontecido ali. Por que o rapaz sentiu que tinha que ajoelhar, ali na rua, pra olhar a moça nos olhos e dizer o que quer que tivesse que dizer?

O semblante dela era de uma tristeza resignada e meio raivosa. A dele, de um certo remorso contido e contrariado. Era certo de que o erro fora dele. E tava ali, de joelhos, tentando consertar.

Não deu tempo de ver se conseguiu. Apesar do constrangimento, porém, a cara dela meio que me transpareceu o interesse de ouvir o que ele tinha a dizer.

Era evidentemente um esforço mútuo de tolerância. Ela, do que sentia em função do que quer que ele tivesse feito. Ele, da culpa que carregava nas costas – pelo que quer que tivesse feito.

Saí de lá registrando fundo na memória o conjunto de sensações que pairavam com tanta densidade no ar que dava pra cortar com uma faca. Torcendo pra nunca precisar passar pela mesma situação.

Escritor por Simião Castro Veja todos os textos deste autor →

Simião é jornalista, repórter de política, escreve contos e crônicas. Também conta histórias em áudio, vídeo, o que você pedir, é produtor multimídia, saca um pouco de tudo. “Eu tento ser um jardineiro das palavras, um aventureiro das sílabas. Duvido de tudo e prefiro assim! As certezas me assustam. Quem tem certezas demais também”.

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