O mundo visto da minha janela mudou

O mundo visto da minha janela mudou

Dias antes do Coronavírus chegar ao Brasil afirmei que minha rotina mudaria apenas 1% se fosse necessário um confinamento. Já sou home office. Faço atividade física em casa há cerca de dois anos, me convencer a trocar a Netflix e meus livros por uma festa é tarefa árdua. O tempo passou e a recomendação de ficar em casa aconteceu. Obedeci, mas com uma dificuldade que nunca pensei que teria com o trabalho remoto.

Eu estava completamente enganada. Minha vida mudou 99% depois que o home office tornou-se a única saída. O problema não é a cama perto da mesa de trabalho, a geladeira repleta de guloseimas, a ausência de um chefe ou de colegas para conversar, alguém que vigie minha produtividade.

A dificuldade está em conseguir concentrar-me nas tarefas e esquecer um pouco o assunto. O mundo visto da minha janela mudou. As pessoas que colocam a engrenagem para girar em trabalhos que exigem presença física estão em casa angustiadas. As que têm que ir ao trabalho estão com medo. Já há mortes em nosso país.

Minha irmã recebeu treinamento para trabalhar na realização dos exames e o que ela me diz é assustador. Enquanto espera, ela e os colegas escolhem quem atender para evitar aglomeração. Gente vulnerável socialmente, que conta com o local para ter uma vida mais digna.

Eu passei da fase de aflição. Porém, estou longe de negligenciar a crise. Posso até pecar por excesso, mas continuarei a ver o mundo através da janela. Neste momento, mais do que nunca. Não quero arriscar deixar lá fora pior do que está.

Uns duvidam da gravidade da situação, dá pra ver da minha janela. Gente que tem a possibilidade de ficar isolado e está se divertindo. As janelas digitais também me angustiam. Tento fechá-las, coloco playlists com músicas que me acalmam, dou play em vídeos de outros assuntos e nem sempre chego ao fim. Entretanto, antes que eu imagine, me pedem para redigir um comunicado relacionado ao Coronavírus. Sem interromper a trilha sonora, em uma tentativa de deixar a situação mais leve, escrevo.

O Corona me levou até a falar sobre o tema do momento. É algo que não gosto de fazer em textos autorais. Normalmente, falo sobre fatos da minha vida (ou inspirados nela), informações que não estão nas manchetes, que já passaram para ter uma leitura melhor de tudo e até ressignificá-los. Mas esse vírus tomou conta de tudo e escrever é uma das minhas formas de cura.

A rotina sempre foi uma grande amiga. Em tempos árduos, ela me consola. É a uma lista de tarefas que me agarro para sair dos meus infernos particulares. Mas, agora, o problema é da humanidade. Por isso, está mais difícil do trabalho me salvar, pois ele tem girado em torno de toda essa crise.

O mundo pós-Coronavírus

E se me perguntarem se quero que o mundo seja o mesmo quando a pandemia terminar, digo que não. Meu desejo é que este período transforme as pessoas, que elas pensem o quanto um homem tem o poder de contagiar o planeta todo, de como estamos conectados e subutilizamos tudo que temos a nossa disposição. É hora de reinvenção, de pensar de forma mais empática.

Como uma amiga me disse, quando a pandemia acabar viveremos um período de pós-guerra. Acredito que o mundo visto da minha janela nunca mais será o mesmo. Teremos que reconstruir muita coisa, pois como em todo combate, haverá destruição, ruínas econômicas e na alma com muita gente em luto. Mas antes do Coronavírus, o mundo já estava doente.

Vi uma reflexão da Leila Ferreira que diz como a sociedade não faz pausas e que agora é obrigada a lidar com o tempo, o ócio e até o tédio. Nos desacostumamos das pausas porque vivemos a tirania do fazer, de nunca parar, termos que ser sempre produtivos. Não estamos acostumados a parar e atualmente, para evitar o pior, não há escolha.

Saíamos do piloto automático forçadamente. Outra característica que contraria o ser humano é não saber o dia de amanhã. Na verdade, certeza mesmo só do hoje, mas quem disse que essa verdade é levada a sério? Um vírus me trouxe este lembrete.

Eu ainda sou uma privilegiada, posso ficar em casa, trabalhar de qualquer lugar há tempos. Entretanto, essa situação me sacudiu, mudou os dias.

É isso que me faz ficar tão desconfortável em casa. No início, parecia que eu nunca havia feito home office.

Mas seu sei que a paisagem da minha janela vai mudar novamente. Daqui de dentro e lá fora haverá mais paz quando tudo isso passar.

Reflexão da Leila Ferreira sobre pausa forçada do Coronavírus

Escritor por Talita Camargos Veja todos os textos deste autor →

Talita Camargos é jornalista e flerta com a literatura, procura inspiração em conversas de ônibus, flores, familiares e amigos. Idealizou o Texto do Dia e publicou nos 365 dias de 2015 neste blog como desafio pessoal.

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