Amor de mãe brava

Amor de mãe brava

Havia dias que a braveza da minha mãe estava mais aguda. Ela falava por horas sem parar. Eu me calava para não agravar a briga e mesmo assim não conseguia. Meu choro era insistente e me desrespeitava, por mais que eu o barrasse, ele vinha, correndo, na segunda ou terceira palavra dela. Incontido, tinha o peso de um palavrão para minha mãe. Logo ela esquecia o motivo da briga e me xingava por eu estar chorando. Aí eu esperava a primeira oportunidade para ir pro quarto.

Ela não dava o braço a torcer, pelo menos até que eu parecesse dormir. Entrava de mansinho, tirava os chinelos e nem acendia a luz. Lá estava minha mãe passando a mão no meu cabelo e me dando um beijo. A mãe brava desaparecia e chegava a mãe doce, cheia de carinho para mim.

Eu fingia não ver em respeito ao jeito durão dela. Tenho certeza de que se desse o mínimo sinal de que a via, ela ficaria triste e começaria a falar tudo de novo. Mãe brava não quer perder a autoridade, mas é mãe como todas as outras, pode até tentar esconder, só que o amor aparece de tanto que é. E o filho vê, talvez ela até soubesse que eu estava acordada. Eu via e aproveitava cada manifestação de carinho. Agora que ela se foi continuo a achar algumas discussões que tivemos desnecessárias, mas consigo enxergar o cuidado dela comigo por trás de tanta braveza.

E eu aprendi a chegar ao lado doce da minha mãe. Por muito tempo desejei saber fazer chover, pois ela se desmanchava com a água que vinha do céu(já contei aqui). Se eu quisesse muito algo que não fosse direcionado aos estudos ou saúde devia saber insistir. Mas uma insistência bem mineira, de quem come pelas beiradas, com argumentos, dados, fatos em doses homeopáticas para que ela visse o quanto era importante para mim. Caso eu quisesse um pedido de desculpas, precisava ficar quietinha no meu canto com cara de cachorrinho caído da mudança.

Funcionava, eu transformava quem estava pê da vida comigo em uma mulher amorosa, açucarada, pois mãe é assim. Todas, no fundo, são iguais mesmo, embora umas, como a minha, tentem disfarçar ou tenham um jeito carinhoso pouco  declamado nas poesias.

Cheguei a ficar muito revoltada durante um tempo com minha mãe brava. Uma revolta silenciosa, pois me faltava coragem de confrontá-la. E as palavras se dissolviam cada vez que ela me ligava para mostrar algo que eu precisava, mandava um bilhete dizendo que estava com saudades ou com os beijos na surdina pós briga. Eu a amava do jeito bravo que ela tentava ter e adorava quando descobria que era apenas uma tentativa de me mostrar os caminhos que ela acreditava serem os melhores para mim.

Se ela estava certa? Nem sempre. Porém, em boa parte do tempo ela sabia das coisas. Hoje faço muito do que ela orientou e a minha cabeça de adolescente se negava. Se estivesse aqui ela iria falar: “Há quantos anos eu te falei para fazer isso?”. Seria uma desforra justa, redenção.

O certo mesmo é que mãe é amor, seja da forma que for. Mãe é como no clichê, pode até tentar algo novo, sem nem ver que é impossível. Pode até não ligar todo dia, não pedir para se agasalhar ou preparar o almoço, mas em matéria de amor, ah, nisso nenhuma consegue ser diferente. É amor que transborda, visivelmente ou escondido na braveza.

Escritor por Talita Camargos Veja todos os textos deste autor →

Talita Camargos é jornalista e flerta com a literatura, procura inspiração em conversas de ônibus, flores, familiares e amigos. Idealizou o Texto do Dia e publicou nos 365 dias de 2015 neste blog como desafio pessoal.

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