Amiga sem nome

Fui a melhor amiga daquela senhora durante meia hora no ônibus. Estava na ponta e decidi passar para o canto, ela estava com um monte de sacolas, seria mais fácil. Ela olhou de fininho para a tela do meu celular: uma foto do meu pai e minha mãe felizes. Comecei a comentar. “Meus pais em preto e branco, acredita que nesta época eles eram melhores amigos e não namorados?”

Ela negou que tivesse olhado, apesar de eu saber que era mentira. Pediu para ver. E como se fosse a primeira vez falou que eles pareciam irmãos. Completou dizendo que eu era mais a cara da minha mãe. Falei que ela tinha menos que a minha idade na época e que embora eu não me achasse tão parecida com ela, muita gente, principalmente os que a conheceram na juventude, comentavam e que isso me deixa muito feliz.

Sem celular, ela mostrou a foto que estava na carteira. Ela jovem com um rapaz. Contou que foi um daqueles casamentos que saem porque os pais intimam o moço, a mulher tinha que se casar logo, porém sempre se deu muito bem com o marido até o último dia. Nunca sentiu um amor avassalador, porém pouca graça via nos outros homens que passavam diante dos olhos dela. Amor mesmo foi quando vieram os filhos, 7, em escadinha, contou com lágrimas nos olhos. Tirou da carteira as sete três por quatro. Uns a cara dela, outros do marido e um ou outro devia ter puxado outra pessoa da família, não identifiquei.

Falou-me da mãe, do pai, de saudade. Dos alunos que se tornaram advogados, médicos, de nunca ter conhecido o mar e ainda ter vontade. Soube da vida inteira daquela senhora em meia hora ou nem isso. Falei pouco para escutar, ela parecia ter muito para dizer. Contei que ela lembrava minha avó, se acostuma fácil com a pessoa, puxa assunto que só.

Fomos papeando até que chegasse meu ponto. Aí que vi, seria melhor é ter deixado-a ir no canto. Porém, já éramos amigas, ela nem se incomodou. Quando dobrei a esquina o ônibus ainda passou por mim e ela acenou um tchau. Foi aí que pensei: como será que ela se chama?

Não perguntei qual o nome dela, nem ela o meu. Confiamos partes da nossa vida a pessoas anônimas. Foi uma amizade breve e só dá para descobrir o nome da senhora se por acaso entrarmos no mesmo ônibus novamente.

Escritor por Talita Camargos Veja todos os textos deste autor →

Talita Camargos é jornalista e flerta com a literatura, procura inspiração em conversas de ônibus, flores, familiares e amigos. Idealizou o Texto do Dia e publicou nos 365 dias de 2015 neste blog como desafio pessoal.

Oi, o que achou do texto de hoje?

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *